sexta-feira, 9 de maio de 2008

Reflexões sobre o Samba Paulista

A origem do samba em São Paulo é um fato que divide opiniões. Entre os que entendem do assunto, não há consenso. Por exemplo: o sambista Geraldo Filme teria afirmado que os sambas de roda realizados pelos negros em Pirapora do Bom Jesus, em 1808, seriam a semente do gênero por aqui – ao menos é disso que se orgulha a cidade no site oficial. Já o pesquisador musical Tadeu Augusto Matheus, conhecido no mundo do samba como T-Kaçula, do Projeto Cultural Samba Autêntico, também músico e compositor, diz que há registros de batucadas anteriores. “Festas feitas em Piracicaba e Capivari, nas senzalas, pelos negros que trabalhavam nas plantações de café em 1722”, garante. Tendo origem no século 16 ou 17, uma coisa é certa: samba é assunto de paulista há muito tempo. E não é que mesmo assim vem Vinicius de Moraes e chama São Paulo de túmulo do samba? No entanto, a frase – sem dúvida, de efeito –, não deve ser levada tão a ferro e fogo, afinal não se pode esquecer que seu constante parceiro, Toquinho, é paulistano do Bom Retiro, o que prova que o dito não passava de mais uma troça do poetinha (quem não se lembra de “as feias que me desculpem, mas beleza é fundamental”?). Além disso, não dá para dizer que uma cidade que deu ao samba nomes como Adoniran Barbosa, o já citado Geraldo Filme e ainda Paulo Vanzolini, Germano Mathias, Caco Velho, Jorge Costa, Hélio Sindô e Henricão – os três últimos, respectivamente, alagoano, gaúcho e cearense, mas radicados em São Paulo – seja cenário para a morte do batuque. O que ocorreu, isso sim, foi um descompasso na difusão das produções de Rio de Janeiro e São Paulo, o que levou a uma influência do primeiro sobre o segundo. Durante muito tempo, o samba paulistano ficou restrito a focos isolados, sobretudo aos cordões carnavalescos, enquanto no Rio o cenário era outro: a então capital do Brasil tinha na Rádio Nacional um forte instrumento para fazer ecoar por todo o país as vozes de Linda Batista, Donga (que teria gravado o primeiro samba da história, Pelo Telefone, em 1917), Orlando Silva e Carmen Miranda, entre outros. “O samba do Rio de Janeiro impregnou o Brasil inteiro”, conta Eduardo Gudin, referência do samba em São Paulo e diretor musical dos espetáculos que compuseram o evento Na Cadência Paulista do Samba, realizado no Sesc Vila Mariana no mês passado (Leia mais abaixo: Batuque Urbano). “A idéia de samba de Noel Rosa, Ismael Silva, Ari Barroso e Dalva de Oliveira – que tocavam no rádio – acabou se espalhando.” No entanto, Gudin ressalta que não há igualmente como negar os ótimos compositores paulistas que têm lugar marcado na história nacional do samba. “Tem Vadico, que compôs muitas músicas com Noel; Garoto, um marco da música brasileira moderna; Adoniran, que fez um samba impossível de fazer em outro lugar; e Germano Mathias, que faz um samba de malandro paulista e é um dos artistas mais bem resolvidos deste país.”

Esse passado sólido do samba de Sampa garantiu um presente profícuo. É só rodar pelos bares de bairros como a Vila Madalena, na Zona Oeste, e do Bixiga, na Região Central, para notar como o samba tem sido a trilha sonora de muitos boêmios até hoje – isso sem contar, é claro, com os movimentos de periferia, que, por sua vez, garantem a produção atual do gênero.

O início

Esse novo momento vivido pelo samba de São Paulo teve um marco em 1996, com a criação do projeto Mutirão do Samba, num botequim na Alameda Barão de Limeira, no Centro. Com base nele, por exemplo, foi criado o Samba da Vela (veja boxe Comunidades do Samba). “O Mutirão, na realidade, era uma reunião de amigos”, diz José Alfredo Gonçalves Miranda, o Paqüera, um dos fundadores tanto do Mutirão quanto do Samba da Vela. “Em 1982, entrei para a escola de samba Vai-Vai e lá consegui fazer alguns amigos que eram do mundo do samba. Um deles foi uma pessoa que era da [escola de samba] Nenê de Vila Matilde, o Douglas Germano, que morava no Centro, na Barão de Limeira, perto da Folha [isto é, perto do prédio do jornal Folha de S.Paulo]. Ali havia um boteco. A gente começou a se encontrar lá para tomar uma cervejinha e fizemos uma roda de samba maravilhosa. Era o auge do pagode comercial e a gente ficava cantando aqueles clássicos.” Os encontros, no entanto, não se limitavam a execuções saudosistas de sambas antigos. Os amigos ali reunidos, segundo Paqüera, refletiam sobre o samba, discutiam sua temática, avaliavam a ligação com o carnaval, e as diferenças entre a produção paulista e a carioca. “Foi aí que surgiu essa idéia do Mutirão do Samba, que começou em 1996 e terminou em 2000”, conta o sambista. “As pessoas que fizeram parte daquele núcleo começaram a entender a linguagem do samba”, afirma Magno Souza, integrante tanto do Samba da Vela quanto do Quinteto em Branco e Preto, um dos mais conhecidos grupos de samba de São Paulo hoje.

Onde está o samba

“Nunca se produziu tanto quanto hoje em São Paulo”, afirma Douglas Germano, que ajudou a formar o Mutirão do Samba e que compôs, junto com outros três parceiros, o Grupo Madrugada, reunido exclusivamente para o evento do Sesc. “A produção agora está fervendo, todo lugar a que você vai tem samba, as pessoas falam de samba. A minha música foi finalista do festival [Festival da Cultura 2005, promovido pela TV Cultura] e era um samba.” Para o jornalista e crítico musical Tárik de Souza, o samba paulista atualmente tem se beneficiado da saturação do chamado pagode comercial. “Sem dúvida, o que impulsiona também esse novo interesse é o aparecimento de eventos como o Samba da Vela, fenômeno típico da periferia paulista e que já gerou um disco, difundindo o trabalho de seus criadores”, explica. O jornalista credita também o novo fôlego do samba de São Paulo à consolidação de grupos como o Quinteto em Branco e Preto – “com repertório e estilo próprios”, diz – e à constante atividade de autores como Luizinho SP, “que leva a localidade no nome”.

Um dos endereços onde se pode conferir a atual boa forma do samba paulista está cravado bem no Centro da cidade, mais precisamente na Rua General Osório, que todo último sábado de cada mês muda de nome e vira a Rua do Samba Paulista – é a roda de samba, integrante do Projeto Cultural Samba Autêntico, que existe desde 2002 e chega a reunir mais de mil pessoas. “O evento destina-se ao resgate, promoção, divulgação e preservação do samba feito em São Paulo”, conta T-Kaçula, uma das cabeças à frente do projeto. “Ao longo de sua existência, amantes, pesquisadores, estudantes, apreciadores, sambistas e público em geral tiveram a oportunidade de se encontrar com músicos e compositores, com a velha e nova guarda do samba de São Paulo.”

Já na Zona Leste de São Paulo é o pessoal do Grêmio Recreativo de Tradição e Pesquisa Morro das Pedras, localizado entre as Ruas Morro das Pedras e Rodolfo Pirani, no bairro de São Mateus, o responsável pelas animadas rodas que atraem gente de toda a cidade. Lá, a exemplo dos outros projetos, o lema é samba no pé e a consciência da importância do gênero musical e do sentimento de coletividade. Tanto é assim que um dos muros da agremiação ostenta a ordem: Amor e Respeito à Velha Guarda.

Seus integrantes, ao dar entrevista, preferem não ser identificados, para “ressaltar o caráter coletivo da agremiação e impedir que a vaidade penetre nesse novo espaço”, segundo explicou o jornalista Thiago Mendonça, em reportagem publicada no jornal O Estado de S. Paulo em junho de 2001, dois meses depois da inauguração do movimento. Um dos porta-vozes do Morro das Pedras explicou ao repórter na época que a formação da agremiação tinha a ver com a decadência das escolas de samba, que “deixaram de valorizar seus músicos para prestigiar pessoas da elite, que não tinham nenhuma ligação com essa cultura e com sua população marginalizada”. Mesmo com a forte valorização do engajamento, que pode ser vista por alguns como radicalismo, todos são bem-vindos às rodas, que, além do samba, contam com outro combustível potente: o caldo de mocotó do “Tim Maia”, famoso dono de bar da região.

Veja mais abaixo os endereços quentes ou clique aqui para conhecer alguns projetos...


Reflorescimento
Entre os grupos que portam o estandarte do samba paulista, fazendo interessante intercâmbio entre os mestres do passado e os novos nomes, está o Inimigos do Batente – cujo nome é uma referência ao samba Inimigo do Batente, de Wilson Batista –, formado por Fernando Szegeri e Railídia Carvalho (voz), Edu Batata (cavaquinho), Geraldo Maracanã (violão), André “Sossega Leão” (pandeiro), Cebolinha (tantã), Kaká Sorriso (repique), Julio Velozzo (cuíca e agogô) e Paulinho Timor (percussão geral). O grupo se reúne semanalmente no bar Ó do Borogodó, na Vila Madalena, em Pinheiros, e atrai interessados no gênero. “São Paulo teve um reflorescimento, um renascimento do samba tradicional de alguns anos para cá, muito traduzido pela força desses projetos pela periferia da cidade, que foram retomando essa tradição das rodas de samba”, analisa Fernando Szegeri. “Nós, do Inimigos do Batente, por exemplo, aproveitamos esse renascimento da roda de samba para levar para os bares, para a noite paulista, esse lado descontraído, da empolgação, buscando sempre participação do público, resgatando também muitos dos instrumentos que já não são mais tão usados atualmente, como a frigideira, a faca e o garfo, os atabaques, a caixa de fósforo, o chocalho de lata de cerveja, essas coisas que fazem parte da roda de samba de fundo de quintal mesmo.”

Também com o intuito de resgatar o chamado samba de raiz, apresentando canções inéditas de grandes sambistas, além de interpretar canções já conhecidas, o grupo Parangolé – formado por Edu Batata (cavaco), Miró (percussão), Paula Sanches (vocal), Paulinho Timor (percussão) e Rodrigo Campos (violão) – teve mestres como os integrantes da Velha Guarda da Camisa Verde e Branco, e Osvaldinho da Cuíca. Sem, por isso, deixar de mostrar composições próprias. “O que se nota é que existe uma geração que vem resgatando as rodas sambas de Geraldo Filme, Adoniran, Germano Mathias e outros bambas da antiga, despertando assim um interesse maior pela história e trajetória do samba paulista”, observa Paula Sanches. “Hoje as pessoas procuram e notam, dão valor ao samba.”

Outro deles, mais conhecido do grande público, é o Quinteto em Branco e Preto, do qual fazem parte Everson Pessoa (violão e voz), Maurílio de Oliveira (cavaquinho e voz),Victor Pessoa (surdo e voz), Magno Souza (pandeiro e voz), Yvison Pessoa (percussão e voz). Formado em 1997 na Zona Sul de São Paulo, o objetivo era clássico: preservar o samba tradicional. Em 2000, o quinteto fez a primeira viagem internacional, dois shows realizados na África do Sul, acompanhado pela sambista carioca Beth Carvalho, madrinha do grupo. No mesmo ano saiu o primeiro CD, Riqueza do Brasil, com participação da própria Beth e mais Almir Guineto, Wilson das Neves, Mauro Diniz e Oswaldinho da Cuíca. Em agosto de 2003 saiu o segundo, Sentimento Popular. Hoje, os integrantes fazem parte também da Comunidade Samba da Vela. “Ficou uma lacuna aberta durante muito tempo no samba de São Paulo, desde a época de Adoniran”, afirma Magno Souza. “Uma lacuna que, a meu ver, o pagode, mais comercial, acabou ocupando. Mas hoje, muito em resposta a isso, o que estamos vendo é essa nova geração preocupada com a preservação, com o samba como cultura de um povo. O que fez com que muita gente voltasse à pesquisa novamente.” (Leia mais abaixo: Expressão da Periferia e Por Dentro da Batucada)

ENDEREÇOS QUENTES

Rua do Samba Paulista (realização do Projeto Cultural Samba Autêntico, da União de Negros pela Igualdade – Unegro/SP – e Assessoria para Gênero e Etnia, da Secretaria de Cultura do Estado) – Todo último sábado de cada mês. Rua General Osório - Centro

Projeto Nosso Samba – As rodas acontecem quinzenalmente, aos domingos à tarde, na Casa de Cultura Afro-Brasileira Casa de Angola, junto ao Centro de Eventos Pedro Bertolozzo, na Avenida Visconde de Nova Granada, 11 - Osasco

Comunidade Samba da Vela – As rodas acontecem as segundas, à noite, na Casa de Cultura Santo Amaro, Pça. Francisco Ferreira Lopes, 434 - Santo Amaro

Grêmio Recreativo de Tradição e Pesquisa Morro das Pedras – Quinzenalmente, aos domingos à tarde. Rua Morro das Pedras, 973 - Jardim Rodolfo Pirani | São Mateus

Ó do Borogodó – De terça a domingo. Rua Horácio Lane, 21 – Pinheiros

Bar Samba – Diariamente. Rua Fidalga, 308 - Vila Madalena

Villagio Café – Diariamente. Praça Don Orione, 298 – Bixiga

Magnólia Villa Bar – De terça a domingo. Rua Marco Aurélio, 883 - Vila Romana


Batuque urbano

Evento do Sesc Vila Mariana celebrou a tradição e a atual produção do samba paulista


O projeto Na Cadência do Samba Paulista, realizado no final de janeiro no Sesc Vila Mariana, traçou, por meio de shows, exposição e bate-papos com críticos musicais, um panorama da história e evolução do samba de São Paulo, desde a obra dos grandes compositores tradicionais até a nova geração de intérpretes e grupos. De 25 a 29 de janeiro, o público pôde conferir performances de alguns grupos e núcleos responsáveis pelo que de mais novo se tem feito em matéria de samba em São Paulo. Participaram Comunidade Samba da Vela – que lançou CD homônimo no primeiro dia do evento –, Projeto Cultural Samba Autêntico, e ainda Quinteto em Branco e Preto, Grupo Madrugada, Inimigos do Batente e Parangolé. Entre os intérpretes, nomes consagrados, como Maria Alcina e Jair Rodrigues, e novos talentos, como Fabiana Cozza. “O Sesc é uma força muito importante de resistência da cultura popular”, afirma Fernando Szegeri, vocalista do Inimigos do Batente. “Especialmente para o samba, o Sesc sempre teve uma força e um papel fundamental.” Para Douglas Germano, do Grupo Madrugada, o evento é o tipo de oportunidade que o sambista espera. “Principalmente porque o espetáculo tem um contexto específico. E chegar e se apresentar no Sesc significa que você vai ter um som legal, vai ter luz, cuidado, isso é uma maravilha.”

Além dos shows, uma exposição de fotos trouxe cenas de bairros da cidade celebrados por composições clássicas de Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini. As imagens antigas apareceram acompanhadas de registros atuais das localidades para mostrar ao visitante as transformações que aconteceram nesses locais. Já nos bate-papos, os jornalistas Tárik de Souza e Mauro Dias conversaram com os interessados sobre as particularidades e a história do gênero em São Paulo. “A idéia era mesmo dar um panorama breve do samba paulista, que é muito mais rico e diversificado do que se costuma imaginar”, afirmou Tárik.

Expressão da Periferia

Espalhados por regiões distantes do centro, os projetos e redutos de samba formam o novo cenário em São Paulo. Em sua canção O Cúmulo do Samba (1997), o cantor e compositor paulistano Carlinhos Vergueiro deu o tom: “O samba também nasce aqui/O samba também mora aqui/Em toda a periferia”. E, de fato, a história se repete. Assim como no início, quando o batuque se fez ouvir nos barracões distantes do Centro, hoje, uma produção de samba genuína e consistente vem da periferia. A Vila Madalena, na Zona Oeste da capital, pode reunir alguns dos mais badalados bares de samba da cidade – alguns deles já tradicionais, como o Ó do Borogodó e o Bar Samba –, enquanto o Bixiga marca presença forte com as rodas montadas nos botequins da Praça Don Orione. Mas é em bairros longe do Centro, como São Mateus (Zona Leste) e Santo Amaro (Zona Sul), ou ainda em municípios da Grande São Paulo, mais especificamente em Osasco, que músicos, compositores e intérpretes se reúnem para dar continuidade à história do chamado samba de raiz.

Entre esses núcleos de resistência do samba paulista, um dos mais expressivos é, sem dúvida, a Comunidade Samba da Vela, movimento do bairro de Santo Amaro. Se não o mais importante, certamente o mais conhecido. É nele que as rodas duram o tempo que uma vela leva para queimar – daí o nome. A idéia nasceu simplesmente para não deixar que os mais empolgados varassem toda a madrugada no batuque. “A gente precisava de um jeito para marcar o tempo”, conta José Alfredo Gonçalves Miranda, o Paqüera, um dos fundadores do movimento. “Pensamos num despertador, mas todo mundo é traumatizado com aquele bip-bip que faz a gente acordar de manhã. Daí pensamos num galo, porque um amigo nosso tinha um galo que cantava de hora em hora. Mas e quando o galo morresse? A gente ia ficar dependente do galo? Não dava... Foi aí que eu tive a idéia da vela. Também porque existe todo um simbolismo religioso e tal.” Nas rodas do Samba da Vela todo mundo pode cantar suas composições. Quem se interessar, mostra a canção para uma equipe de avaliadores numa noite iluminada pela chama de uma vela rosa, que indica que o compositor está “em teste”. Se o samba convencer os bambas, entra para um caderninho e volta na semana seguinte para ser executado na noite da vela azul. Novo teste. E, se o samba for bom mesmo, é consagrado de vez na roda da vela branca. “É uma emoção danada”, conta Paqüera. “Tem gente que até chora.”

Já, em Osasco, o Projeto Nosso Samba (foto) vem, há sete anos, firme no objetivo de valorizar o samba dos novos talentos longe da grande mídia, todos compositores da comunidade. “Antes dávamos valor principalmente para as composições que chegavam do Rio”, conta Fábio Rodrigues Goulart, um dos fundadores do projeto. “Por isso, a intenção era ter esse contato, e trocar músicas, um compositor mostrar seu trabalho para o outro, enfim, fazer essa divulgação.” Entre as bandeiras dos osasquenses está a defesa de que o samba não é somente um gênero musical, mas sim uma cultura, com códigos e condutas que regem a vida dos integrantes da comunidade. “Cantar samba de raiz qualquer um canta”, afirma o sambista. “Mas nós começamos a entender que o samba não se resumia a isso. Samba é um estilo de vida, faz parte do meio de vida de uma sociedade, o samba é cultura.” A exemplo das demais rodas de samba, a do pessoal de Osasco é receptiva a todos os que quiserem conhecer um pouco mais o trabalho da comunidade e conferir sua música. Quanto aos planos de gravar, a postura é rígida. “Não nos interessa gravar um CD para nos divulgar; se gravássemos seria mais para efeito de registro da nossa produção”, explica Marcelo Benedito, também integrante do Nosso Samba. “Além disso, ficaria muito fácil para as pessoas, elas não precisariam mais vir ao reduto para ouvir nosso samba, quando o legal é vir até aqui e conhecer nossa proposta”, sentencia Fábio Goulart.

Com um caráter mais ligado à pesquisa das origens do samba paulista, o Projeto Cultural Samba Autêntico foi criado em 1999 reunindo pesquisadores, músicos e compositores que uma vez por mês comandam a cantoria na Rua do Samba Paulista, a Rua General Osório, no Centro de São Paulo. “Em 1999, surgiu a necessidade de pesquisar e entender um pouco mais a grandeza do samba de São Paulo e a importância de sua história”, explica Tadeu Augusto Matheus, o T-Kaçula. “Antes disso, a gente sempre cantava sambas de Nelson Rufino e Batatinha, que são da Bahia, do Zé do Maranhão, Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres, Cartola, Noel Rosa, Candeia etc. E de São Paulo a gente cantava muito pouco, acabava ficando com Geraldo Filme, Paulo Vanzolini, Eduardo Gudin, alguma coisa de Adoniran Barbosa, e aí a gente sentiu a necessidade de conhecer a árvore genealógica do samba de São Paulo.”

Por dentro da batucada

Pagode – Tem um ritmo repetitivo e utiliza instrumentos de percussão e sons eletrônicos. Espalhou-se rapidamente pelo Brasil, graças às letras simples e românticas. Entre os grupos mais conhecidos estão Fundo de Quintal, Negritude Jr., Só Pra Contrariar, Katinguelê e Art Popular. (mesmo com o termo “pagode” tendo sido criado pra falar de outro tipo de música)

Samba-exaltação – Tem letras patrióticas e ressaltando as maravilhas do Brasil, com acompanhamento de orquestra. Um dos maiores exemplos do estilo é Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, gravada em 1939 por Francisco Alves.

Samba de partido-alto – Com letras improvisadas, fala sobre a realidade dos morros e das regiões mais carentes. É o estilo dos grandes mestres do samba. Os compositores de partido-alto mais conhecidos são Aniceto, Martinho da Vila, Arlindo Cruz, Almir Guineto e Zeca Pagodinho.

Samba-enredo – Está ligado ao assunto que a escola de samba escolhe para o desfile do ano. Geralmente segue temas sociais ou culturais. É ele que define toda a coreografia e cenografia utilizadas na exibição da escola de samba.

Samba de breque – Esse estilo tem momentos de paradas rápidas, nas quais o cantor pode incluir comentários, muitos deles em tom crítico ou humorístico. Seus mestres são Moreira da Silva e Jorge Veiga.

Retirado da Revista E n°105 do SESC – www.sescsp.org.br

terça-feira, 6 de maio de 2008

Teoria sobre a "industrialização" do samba e sua inserção no capitalismo


Samba, disciplina e identidade

Emilio Gozze Pagotto

1. Introdução

Segundo Hermano Vianna [1] um dos "mistérios" que cercam o samba foi ter passado de música de redutos extremamente pobres da cidade do Rio de Janeiro a gênero musical nacional, num período de tempo muito curto. De fato, ainda está por explicar o que teria levado a essa rápida promoção, embora, a partir do texto de Vianna se possa formular a hipótese de que o projeto nacionalista dos anos trinta encontrou no samba o grande veículo de significação de identidade, levando os meios de comunicação a promoverem o gênero, que assim passou a definir o centro da nacionalidade musical, passando os demais gêneros (com exceção talvez do choro e da marchinha) à periferia da nacionalidade, tomados por regionais (é o caso dos ritmos nordestinos, gaúchos, mineiros, etc.). Da leitura de Vianna, pode-se inferir que um dos fatores que explicaria essa disseminação teriam sido os laços entre as elites e as camadas mais pobres da população, os quais teriam sido mais fortes e mais freqüentes do que normalmente se supõe no Brasil, mesmo antes do advento do samba. Segundo ainda o mesmo autor, não teria o samba nascido marginalizado e perseguido, sendo cultivado em redutos isolados durante muito tempo, para depois ser descoberto pela elite e guindado à posição de música nacional. Desde cedo o samba já teria interagido com o mundo da elite, tendo-se criado a sua mística "genuína" posteriormente.

O samba consagrado como gênero nacional de que trata Vianna vem a ser o que Carlos Sandroni [2] (2001:32-37) chamou de "paradigma do Estácio", ou seja, o samba nascido entre os fundadores da primeira escola de samba – a Deixa Falar – nas cercanias do bairro do Estácio, no Rio de Janeiro. Como aponta Sérgio Cabral, essa nova forma de manifestação artística se espalha pelos morros do Rio de Janeiro com uma velocidade espantosa, juntamente com a instituição escola de samba. Assim, não só o samba se torna o gênero nacional, como também passa a ser fervorosamente cultivado nos morros e subúrbios, primeiramente do Rio de Janeiro e posteriormente de outras cidades do país, juntamente com a instituição da escola de samba.

A pergunta que esse trabalho faz é justamente essa: como explicar que o novo gênero se espalha de maneira tão rápida nos morros, a ponto de se tornar, num curto espaço de tempo, uma tradição equiparável àquelas que se costuma rotular de folclóricas?

2. Um pouco de história

Quando se fala do surgimento do samba, à parte a sua origem rural na forma de diversos ritmos encontrados em várias regiões do país, à parte a própria etimologia da palavra, que a ligaria a rituais de fertilidade africanos, temos que ter em mente o seu aparecimento como gênero de música popular, aqui entendido como em Sandroni [3] , ou seja, como produto de consumo nas sociedades urbanas modernas. Entre outras características, isto tem como conseqüência a constituição da função de autoria e todas as conseqüências que daí advêm: direitos autorais, comercialização, etc.

É como produto de consumo que o samba se torna o gênero nacional destacado por Vianna. Como tal, - e aqui sigo Sandroni [4]– tem dois "nascimentos": o primeiro, ligado à casa da Tia Ciata, e às manifestações do samba de roda do Recôncavo baiano transplantadas para a capital federal e espertamente lançadas por Donga e companheiros para o mercado de consumo do carnaval carioca (embora tais composições – e aqui destacamos "Pelo Telefone"- , originalmente tivessem características que as colocariam como mais adequados a ambientes fechados). Nesse primeiro nascimento, o que temos é o percurso segundo o qual uma manifestação cultural produzida no âmbito que Sandroni chama de folclórico – ou seja, desvinculada dos meios de comercialização de cultura de massa – é guindada ao plano do popular – entendido aqui como manifestação formatada para consumo. A análise que Sandroni [5] faz da estrutura do samba "Pelo Telefone" é, nesse sentido, bastante elucidativa. Nela, podemos ver como os "autores" – Donga e Mauro de Almeida - buscam "retocar" a canção a fim de que ela tenha o formato adequado para consumo.

A segunda filiação – à qual Sandroni [6] atribui a designação de "paradigma do Estácio" – está ligada ao surgimento da própria escola de samba. Esta segunda "invenção" do samba se deu na região do bairro do Estácio, no Rio de Janeiro, entre sambistas que fundaram o que é reconhecido como a primeira escola de samba – a "Deixa Falar" (mais à frente vamos discutir o próprio rótulo escola de samba e o fato de que a "Deixa Falar" nem sempre foi considerada escola de samba).

Foi este segundo paradigma que foi alçado à condição de gênero nacional e é a sua criação que nos interessa. Mais propriamente, o que gostaria de destacar é o processo por meio do qual, num curto espaço de tempo, "o samba criado pelos compositores do Estácio de Sá espalhou-se pelo Rio de Janeiro com uma velocidade que deve ter surpreendido até os compositores do bairro" , nas palavras de Sérgio Cabral (cf. Cabral, 1996: 60). É esta velocidade que me interessa neste trabalho. O que explicaria que num período de tempo tão curto o samba – e a escola de samba – se espalhasse com tanta rapidez entre a população pobre do Rio de Janeiro (e de outros estados)? Senão vejamos: a partir das informações contidas em Sérgio Cabral [7] , temos uma cronologia das escolas de samba que é bem ilustrativa do que se quer dizer aqui:

em 1928 – 12 de agosto é fundada a primeira "escola de samba" e é feito o lançamento da primeira gravação do novo estilo, por Francisco Alves (por sinal, o samba "A malandragem")
em 1929 – a Mangueira é fundada – em abril, 28

em 1932 – é promovido pelo jornal Mundo Sportivo o primeiro desfile das escolas de samba

em 1934 – fundação da União das Escolas de Samba – 28 filiadas

em 1935 – já com subvenção oficial da prefeitura do Rio de Janeiro – com as escolas desfilando sob o tema "A Vitória do Samba", para celebrar o primeiro concurso realizado sob o patrocínio oficial.

Vejamos: num período de seis anos a instituição das escolas de samba já contava com uma entidade agregadora – a União das Escolas de Samba - e já se realizavam concursos patrocinados pelo poder público. O mais interessante é que os inúmeros testemunhos colhidos por Sérgio Cabral demonstram que, uma vez inventado, o novo gênero foi levado às diversas comunidades, obviamente a partir das inúmeras redes sociais de contato entre a população que habitava, em especial, os morros cariocas. Por exemplo:

O compositor Carlos Cachaça , considerado menestrel da Mangueira, que nasceu perto do morro no dia 3 de agosto de 1902, (...) revelou que, na sua infância, também não havia samba por lá, embora houvesse carnaval. Foi testemunha da primeira vez que em que se cantou um samba na Mangueira. E quem cantou nem pertencia à comunidade: foi Elói Antero Dias, o Mano Elói, um personagem muito importante da negritude carioca [8]

Paralelamente, o gênero se populariza pelo rádio, sendo veiculado também em discos, mas é importante dizer que as primeiras gravações ainda não traziam o gênero plenamente, já que não havia, por exemplo, instrumentos de percussão nas gravações (a primeira contando com percussão do samba de rua, como se sabe, foi Na Pavuna). Esta é, então a questão: o que explica um espalhamento de um novo gênero musical e a agremiação no qual ele é praticado, de maneira tão rápida?

Para responder a essa pergunta, penso que não basta somente nos atermos à rede de contato entre as comunidades. Ela é certamente o veículo, mas não é, por si, o motor desse espalhamento. Ao mesmo tempo, essa é uma questão diferente daquela levantada por Vianna. Naquele trabalho, trata-se de explicitar o pacto entre elite e povo, que explicaria, segundo Vianna, a apropriação do samba, que é guindado à posição de ícone nacional. Ora, seguramente não é a relação entre elite e povo, apontada por Vianna, que acarretará o espalhamento do samba nas camadas mais pobres da população das cidades. Ele está em outro lugar. Paralelamente, penso haver uma relação entre o espalhamento do novo gênero e a instituição das escolas de samba com a transformação dele no gênero nacional por excelência. A hipótese com a qual trabalharei é a de que se trata de dois processos diferentes, inter-relacionados. No caso da transformação do samba no gênero nacional, estão em jogo as forças poderosas de identidade nacional e a própria relação entre as elites e as classes mais pobres, que é, como demonstrou Vianna bastante antiga no Brasil. No caso do espalhamento dos sambas pelos morros, penso que esteja em jogo uma reação a esse processo identitário mais amplo, uma articulação das camadas mais pobres numa reação à estratificação social, à pressão exercida de cima para baixo. O samba seria, deste ângulo, a primeira grande reação da antiga escravatura, encontrando finalmente seu caminho de expressão e de organização.

Assim, podemos seguir Vianna e dizer que o samba não nasce perseguido, para depois ser guindado à categoria de música nacional, supra regional e supra social , mas que, ao contrário, nasce já como produto de música de consumo. Porém, isso não implica que não haja um outro processo em jogo, por meio do qual o samba e suas formas de organização e de execução se tornam um veículo de expressão e de identidade das camadas mais pobres, especialmente aquelas oriundas dos antigos contingentes de escravos. Teríamos assim um caso muito curioso, no qual uma determinada forma artística de expressão nasce, não no plano do folclórico, mas já como produto da sociedade de consumo, mas serve de expressão de uma parcela significativa da sociedade. Aqui podemos ver a grande singularidade do samba: nasce para a sociedade de consumo e se enraíza nos grupos que o inventam como traço de identidade. Veja que no caso de gêneros como o da música regionalista, o que se dá é o contrário – um determinado gênero cultivado no plano folclórico é guindado à condição de ícone de identidade pelas elites, e isto reforça eventualmente a sua atuação no plano folclórico. No caso do samba, trata-se de um gênero nascido no âmbito da prática urbana, imediatamente colocado como produto de consumo, mas que se enraiza, desce ao degrau do folclórico, transformando-se em elemento de identidade. A partir daí, teremos uma tradição que é evocada até os dias de hoje e que é colocada em xeque por Vianna – ou seja – haveria um samba "puro", "essencial" que seria necessário preservar dos ataques da modernização e da indústria cultural? Ora, ele e outros mostram que o samba já nasce como produto, logo tal tipo de invocação resultaria sem sentido. No entanto, é preciso destacar o caso singular do samba: a invenção do gênero datada, circunscrita historicamente, vai representar a criação de um ícone de identidade que é, como tal, elevado posteriormente à condição de bem transcendental. Veja que o primeiro desfile subvencionado, de 35 já fala na vitória do samba. Do que se está falando de fato?

3. O novo samba e seus inventores

Já é lugar comum atribuir a formação das favelas no Rio de Janeiro a dois fatores: uma forte migração de populações de baixa renda de vários pontos do estado e do país para a capital e o processo de reurbanização da cidade, iniciado pelo prefeito Pereira Passos, que retirou os moradores dos cortiços da cidade velha, obrigando-os a ocupar os morros. Nessas localidades, conservam-se práticas culturais muito ligadas ao universo rural brasileiro, como o jongo, as danças de umbigada, o candomblé. Ao mesmo tempo, esta é uma população procurando adaptar-se ao modus operandi das cidades, isto é, emprego, salário, obrigações, etc.

Aqui temos um fenômeno geracional e social. Quem vai desenvolver o samba moderno são os jovens dessa camada muito pobre da população: a primeira geração criada nesse ambiente. Ou seja, os morros são ocupados pelos pais dessa geração, que ou nasce nos morros, ou para lá se muda ainda muito criança. Temos assim uma juventude negra que não viveu a escravatura, crescida no ambiente urbano, mas ao mesmo tempo excluída dele, que ainda tem contato com uma série de práticas de origem africanas ligadas ao universo rural brasileiro.

O que gostaria de argumentar é que essa geração tem nos seus pais os praticantes de música e dança no âmbito do folclórico. E vai ser essa geração que vai inventar uma nova música popular (no sentido de música de consumo e autoral). A grande peculiaridade do samba moderno é que:

1) já nasce como produto de consumo (ou seja, rapidamente ganha o disco e o rádio, partindo daí para se tornar gênero nacional);

2) nasce como elemento do carnaval, isto é, como possibilidade de integrar-se no carnaval;

3) passa a marcar uma classe, uma geração, um povo geograficamente circunscrito e, por conseguinte, retorna a alguns de seus aspectos "folclóricos" que lhe deram origem.

Vejamos isso musicalmente:

1) Ismael Silva admite em mais de um lugar que a nova batida foi criada para facilitar o carnaval de rua, sendo mais propícia à dança individual em espaços abertos e ao desfile em linha reta – daí a crítica que faz Donga, chamando-a de marcha [9];

2) Os sambas de desfile de escola tinham todos somente a primeira parte, sendo a(s) segunda(s) improvisada(s) no decorrer do desfile. Esta prática levaria também a que os divulgadores do samba como produto incentivassem as parcerias dos artistas "de morro" com compositores profissionais, nas quais os primeiros entravam com a primeira parte e os outros com a segunda. É isso que explica, em parte, a grande produção de Noel Rosa, muito procurado para essa tarefa;

3) Inicialmente, o novo samba era pensado para acompanhamento de percussão, o que em parte se explica, seja pela falta de recursos fianceiros de seus praticantes, seja pela sua falta de formação musical, seja pela proximidade com as práticas folclóricas.

Ora, o que temos aqui? Temos uma prática musical híbrida: de um lado, guarda muitas semelhanças com o nível folclórico: ausência de acompanhamento musical, obra não terminada, contando sempre com a participação da assistência; por conseguinte, obra com mais de uma assinatura. Por outro lado, os refrões já "têm dono", têm autoria e vão encontrar no mundo da produção musical o seu formato final. Assim, esse tipo de música, que ao mesmo tempo serve aos propósitos do mercado, ainda tem a sua forma atrelada a práticas folclóricas, que permitem, portanto, a sua utilização em ambientes de ritualização e socialização. Dessa forma, diferentemente do samba anterior que era uma apropriação de motivos folclóricos já existentes e trazidos do interior do Brasil, temos aqui a invenção de uma tradição – obviamente não a partir do vazio, mas calcada nas práticas dos batuques diversos – contando, porém, com a interação com a sociedade de massa, os meios de produção capitalista.

4. Disciplina e identidade

Do depoimento de Ismael Silva a Sérgio Cabral, no livro "A história das escolas de samba", fica bem claro que o novo ritmo acabou tendo uma função importante que foi a de propiciar aos integrantes das camadas mais pobres participar dos desfiles de carnaval. Por volta dos anos vinte, o carnaval contava com bailes particulares e o desfile de ranchos e cordões, que contava com subvenção oficial, regras de concurso, etc.

Ao mesmo tempo, como é sabido, havia uma certa perseguição a rodas de malandros, em função do fato de que costumavam dar margem a práticas violentas, como é o caso da batucada. Pondo ordem na casa: se costuma dizer que o samba sofreu no princípio muita perseguição. Como argumenta Vianna [10] , o samba não surgiu completamente segregado e nem teria havido um isolamento completo entre as elites e as práticas populares. Por conseguinte, não seria o caso de dizer – seguindo Vianna – que o samba foi objeto de grande perseguição. Ou seja, se de um lado da mitificação do samba se costuma levar a extremos a sua suposta perseguição, de outro Vianna deixa de lado, a meu ver, um aspecto importante da história: o fato de que os inventores do samba do Estácio – Ismael e sua turma – não eram exatamente parte integrante da classe trabalhadora. Constituíam uma legião de marginalizados sociais, frutos da grande migração do final do século XIX e da falta de uma política integradora das pessoas oriundas do regime escravocrata. Assim, se não se pode falar de uma perseguição sistemática ao samba, no sentido de perseguir uma determinada forma de música, também não é menos verdade que os encontros de sambistas vinham permeados de outras práticas que eram coibidas – com ou sem preconceito – pela polícia do estado [11].

Sandroni [12] faz um interessante levantamento do destino que teve a geração que inventou o samba, chamando a atenção para o fim precoce que muitos tiveram:

Canuto (parceiro de Noel Rosa em "Esquecer e Perdoar") morre tuberculoso em 1932, com menos de trinta anos;

Antenor Gargalhada – morre tuberculoso em 1941



Ernani Silva – autor de "Primeiro Amor" – morre aos 28 anos, atirado de um morro.

Gradim – (autor de "Nem assim") morre tuberculoso

Nilton Bastos – grande parceiro de Ismael Silva – morre tuberculoso aos 32 anos.

Rubem Barcelos – citado como o primeiro a fazer sambas no novo estilo – morre tuberculoso aos 23 anos.

Mano Edgar – assassinado aos 31 anos em briga de jogo


Brancura – morre aos 27 anos, com insanidade mental


Baiaco – morre aos 22 anos de úlcera

Esta é um dos traços diferenciadores entre o "primeiro" e o "segundo" tipo de samba para os quais Sandroni vai chamar a atenção: enquanto os criadores do estilo antigo de samba, mais próximo do maxixe, já eram músicos de carreira consistente, os criadores do novo estilo pertenciam a uma geração que vivia no limite entre a normalidade social e a marginalidade. A exceção do primeiro estilo seria Sinhô, que morreu aos 42 anos tuberculoso; do estilo novo, podemos apontar Ismael Silva, que, a despeito das adversidades que viveu, alcançou idade mais avançada.

Trata-se, portanto de uma geração de jovens, nascidos no começo do século, até os anos 10, filha de migrantes em sua maioria negros, que vêm de várias partes do país tentar a vida na capital. Encontram uma república tentando "civilizar" o país, transformar, ao menos sua capital, numa reprodução das capitais européias. Note que essa geração que começa a ocupar os morros compartilha o período com a belle époque, com o saneamento do Rio de Janeiro, com o Parnasianismo.

Assim, a criação daquela que é considerada a primeira escola de samba a "Deixa Falar" buscava antes de tudo constituir um lugar possível de inserção de pessoas daquela parte da sociedade no carnaval institucionalizado. E o carnaval era algo bem disciplinado desde o começo do século. A hipótese que gostaria de defender é a de que o processo disciplinador do estado terminou por gerar um forte sentimento de identidade, tanto das escolas individualmente, quanto do samba e dos seus praticantes, no geral. Assim, a primeira "escola de samba", nas palavras de Sérgio Cabral:

...além de reunir os jovens e revolucionários compositores do bairro, pretendia também melhorar as relações dos sambistas com a polícia, já que, sem a autorização policial, não tinham direito de promover as rodas de samba no Largo do Estácio e muito menos de desfilar no carnaval. Por isso, trataram logo de legalizar a situação do grupo. Honra seja feita, a perseguição policial so samba já não era tão violenta. Perseguia-se o jovem negro, como antes, durante e depois do Deixa Falar, uma das facetas mais fortes do racismo brasileiro. Mas raramente por cantar, dançar ou tocar samba [13].

O carnaval, nas décadas de 10 e 20 era bastante disciplinado no Rio de Janeiro: as agremiações contavam com apoio oficial, promoviam-se concursos entre os blocos e os ranchos. Não havia ainda, como assinalam vários pesquisadores, uma música típica de carnaval, cantando-se todo tipo de música nesses desfiles. Assim, o "Deixa Falar" se organiza como um bloco, para, dois ou três carnavais depois, se inscrever no concurso de ranchos, no qual não obteve muito sucesso. Pouco depois, desapareceu como agremiação. No seu rastro, no entanto, se organizaram dezenas de outros blocos, que rapidamente tomaram o título de "escola de samba", tendo sido realizado, como já vimos, seu primeiro concurso em 1932 (cf. mais à frente discussão sobre o rótulo "escola de samba").

Em primeiro lugar, por que era necessário organizar um bloco? Como o próprio Sérgio Cabral frisou, para garantir a inserção no carnaval como um grupo. Assim, esses jovens estavam inventando um novo gênero musical – uma batida nova adequada ao desfile na rua – e, em função das exigências do Estado, fundam também uma nova maneira de brincar o carnaval – a escola de samba.

Em segundo lugar, o que significava organizar um bloco? Implicava ter uma ata de fundação, um organograma de cargos e funções, um sistema de escolha de dirigentes, um livro caixa, enfim, todos os requisitos formais que tornam possível uma instituição existir no mundo oficial. Além disso, implicava lidar com a autoridade policial competente, que liberaria, ou não, a presença nas ruas. Se levarmos em consideração que esta geração que inventou o samba é constituída de jovens negros à margem do mercado de trabalho formal, às vezes envolvida em pequenas contravenções, morando precariamente nos morros, ainda na sua fase inicial de ocupação, temos uma situação inusitada: de praticamente todos os aspectos da vida social institucionalizada, esses jovens se encontram apartados. No entanto, para se integrarem no carnaval – em princípio a festa da transgressão – é preciso que se organizem na forma da lei.

Em terceiro lugar, mas não menos importante, organizar um bloco – e logo em seguida uma escola de samba - vai implicar pensar a própria organização em face do carnaval. Ou seja, implica responder a pergunta como: quem somos?, que cores nos representam?, com que música desfilaremos?, como nos apresentaremos? Essas questões já estavam presentes no carnaval, especialmente se considerarmos os ranchos, agremiações trazidas, ao que parece, da Bahia, inspiradas nos ternos de folias de reis e que foram, até os anos 40 a principal atração do carnaval carioca. Foi na oposição com os demais valores do carnaval que as escolas de samba se constituíram como algo à parte, e esse é um movimento muito curioso, ao qual não se tem dado muita importância.

Há uma história que ilustra muito bem o que estamos tentando demonstrar aqui. Tomo-a emprestado de Sérgio Cabral:

No dia 1o. de maio de 1934, ao receber os dirigentes da Escola de Samba Vai como Pode que pretendiam renovar a licença de funcionamento, o delegado de polícia Dulcídio Gonçalves fez uma proposta inesperada: a mudança do nome da escola. Alegou que não ficava bem uma grande escola de samba ostentar um nome tão chulo como Vai Como Pode. Paulo da Portela, embora nunca fosse chamado de Paulo da Vai Como Pode, tentou defender o antigo nome, segundo ele sugerido pela própria polícia. O delegado, porém, sustentou que não renovaria a licença de nenhuma escola chamada Vai Como Pode. E sugeriu um nome que, segundo ele, tinha a pompa adequada para uma escola de samba daquele nível: Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela. Diante das circunstâncias, a proposta foi aceita.[14]

Não estou querendo insinuar que a identidade das escolas de samba foi um processo que veio de cima para baixo. O que gostaria de enfatizar é que um efeito colateral da força disciplinadora do Estado teria sido a constituição de uma identidade coletiva que talvez não tivesse se constituído tão rápido e de maneira tão explícita, não fossem as pressões do estado no sentido de disciplinar a festa popular, os ajuntamentos, a folia. Não era uma folia desregrada: não só havia condições para participar, como a própria festa se transformava em um concurso e como tal necessitava de regras.

Os concursos faziam parte do carnaval dos ranchos. O Deixa Falar começou como um bloco que fazia uma música diferente para, logo em seguida, postular um lugar no mundo dos ranchos, onde não foi bem sucedido, porque, obviamente, não contava com a estrutura, organização e dinheiro que as grandes agremiações do gênero contavam. Os blocos fundados na esteira do Deixa Falar rapidamente passaram a se auto-intitular Escolas de Samba e, em 1932, tiveram seu primeiro concurso – patrocinado pelo jornal Mundo Sportivo -, em 1934 organizaram a União das Escolas de Samba – com 28 escolas – e em 1935 realizaram o primeiro carnaval oficial, já com subvenção do governo. Nesse carnaval, todas as escolas desfilaram com o tema "A Vitória do Samba".[15]

Que papel teriam tido os concursos entre as escolas? Penso que o principal papel foi operarem também um gesto de identidade e de mitificação dessa identidade. Assim, cada escola de samba contava, nessa época, com duzentos, trezentos componentes (o que hoje em dia é o que vai só na bateria). Eles desciam o morro para participar de uma disputa. Essa arena moderna pode ser vista de diversas maneiras. Em primeiro lugar, trata-se de exibir-se para outrem que detém o poder do julgamento. O interessante é que, desde muito cedo, esse outro não provém dos mesmos extratos sociais daqueles que estão sendo julgados. Em segundo lugar, a arena é o não lugar, é a cidade por onde se passa, mas não se mora, não se compra, não se come, não se dorme. E nessa arena, diante dos olhos do que disciplina, os sambistas se digladiam para que se diga: quem é o melhor de nós? O interessante é que essa disputa ritualizada não impede em absoluto a convivência dos sambistas ao longo do ano. Como se sabe – e os depoimentos no livro de Sérgio Cabral são bem claros a esse respeito – sempre houve uma grande circulação entre as escolas. Mas a disputa motiva, a disputa gera a indústria, o labor, a identidade. Num primeiro momento, no plano local: eu = mangueirense// eu = portelense. Num segundo momento: eu=sambista.

Este segundo movimento decorre da própria natureza da disputa: é entre iguais. Iguais oficializados: os membros da União das Escolas de Samba. É este eu que celebra a "Vitória do Samba" no carnaval oficial de 1935. É interessante que, ao evitar o carnaval dos ranchos, os sambistas inventavam a própria arena. Então, na tensão com a disciplina do estado, essas forças submetidas respondem reorganizando o próprio estado.

Uma das maneiras como se pode ver a constituição dessa nova arena é a maneira como a designação daquelas agremiações vai aparecendo. No desfile de 1933, o regulamento divulgado pelo jornal Correio da Manhã apresenta, como salienta Cabral (1996) a designação escola de samba entre aspas:

1. O desfile das "escolas de samba" começará às nove horas da noite e terminará à uma (...)

2. As "escolas de samba" que demandarem da Praça da República subirão a Rua Senador Eusébio...[16]

Para o mesmo desfile de 1933 a Mangueira entregou aos jornais uma descrição do enredo, publicada no jornal Diário Carioca e elaborada, segundo Cabral pelo compositor Carlos Cachaça, que começa com outra designação: “O Bloco Carnavalesco Estação Primeira, com sede à rua Saião Lobato, no Morro de Mangueira apresenta ao povo carioca o seu modesto enredo, que representa Uma segunda-feira no Bonfim, na Ribeira" [17]

Como instituição oficial que tem a licença de brincar o carnaval,a Mangueira é um bloco carnavalesco. O enunciador-sambista tem o cuidado de circunscrever-se sob o rótulo oficial, ao dirigir-se a um órgão de imprensa. No entanto, no mesmo ano, segundo nos informa o mesmo pesquisador – Sérgio Cabral – já se realizava a primeira reunião para a criação da União das Escolas de Samba (que só se dará, de fato, em 1934). Diz o documento: “Presença das pessoas representantes das escolas de samba à primeira reunião da Diretoria da União das Escolas de Samba, realizada em 15 de janeiro de 1933, à Rua do Rosário,34, sobrado” [18]

Ao participar do carnaval oficial, aqueles agrupamentos reclamam um lugar diferenciado. Assim, o rótulo escola de samba, no princípio apenas uma metáfora auto-elogiosa, se transforma na designação que cumprirá o papel de circunscrever um território próprio. Veja que inicialmente a imprensa apõe aspas, assinalando a estranheza de especificidade. Ao mesmo tempo, a designação bloco carnavalesco ainda circula, mesmo quando o enunciador é o sambista, porém fazendo uma clara referência ao seu estatuto "oficial", para logo em seguida ser assumida como um nome e um referente à parte escola de samba. Ora, esse movimento de identidade pode ser percebido pelos próprios estatutos e regulamentos. Neles, da mesma maneira que nos textos legais em geral, se busca definir um referente reclamado. Um eu no carnaval oficial, que não é um rancho, não é um bloco, é um outro.

Por exemplo, no carnaval de 1933, o concurso das escolas de samba organizado pelo Jornal O Globo trazia, no seu regulamento, “pelo menos dois dispositivos que permaneceriam para sempre nos desfiles das escolas de samba: a proibição do uso de instrumentos de sopro (com a observação de que seriam aceitos os instrumentos de corda) e a obrigação de cada escola apresentar baianas (ainda não se falava em "alas")” [19]

Os mesmos dispositivos apareceriam nos regulamentos da União das Escolas de Samba. Por que tais dispositivos? A proibição dos instrumentos de sopro teria a ver justamente com o desfile dos ranchos. Teria sido uma maneira de diferenciar o desfile dos ranchos do desfile das escolas de samba. De fato, como Sandroni [20] salienta (embora sem concordar), uma das características musicais normalmente atribuídas ao novo estilo de samba, em oposição ao samba "amaxixado", foi o fato de contar com maior apoio na percussão do que em instrumentos harmônicos. Musicalmente, o samba do Estácio se teria constituído sobre uma base percussiva, até porque seus inventores não teriam tido acesso à educação musical formal e nem teriam recursos para a aquisição de instrumentos musicais. A prática musical do samba remeteria, assim, aos seus ancestrais cultivados em várias regiões do país: o samba em roda, com versos de improviso acompanhados de instrumentos percussivos.

Ora, marcar isso no regulamento das escolas de samba é delimitar um território novo de disputa, inserindo-se no carnaval como uma instituição à parte. Ao mesmo tempo, a obrigatoriedade das baianas já é uma herança dos ranchos. A figura da baiana foi muito popular no Rio de Janeiro dos anos iniciais do século XX. A comunidade baiana formava, como se sabe, um núcleo relativamente organizado em torno das Tias, atuando comercialmente na venda de doces e...fantasias de baianas. Assim, aqui temos o lado oposto da moeda: a aceitação de um modo de operação já constante do carnaval.

5. Últimas palavras

O objetivo desse ensaio era investigar o rápido espalhamento do samba e das escolas de samba entre as camadas mais pobres do Rio de Janeiro. Na nossa visão, este foi o resultado de um processo de identidade no qual uma geração buscava responder à segregação social, ao esforço disciplinador do Estado.

Uma geração filha de ex-escravos sem perspectivas na capital federal, criada nos morros recém-ocupados, circulando entre jongos e macumbas transplantados do interior do estado ou de outros estados. A inserção possível é a do carnaval. Mas mesmo esta está disciplinada, com regras e subvenções, concursos. É uma geração que se elabora, que elabora a sua identidade a partir desse jogo de pressões.

É esse movimento de identidade que explicaria, a meu ver, o rápido espalhamento do samba. Foi uma linguagem na qual se torna possível codificar anseios, tristezas e o próprio isolamento, a distância e a proximidade com a cidade. O samba teria representado, assim, uma possibilidade de se dizer. E quanto mais o Estado pressionava, mais a resposta ficava clara: Nós somos sambistas. Nós somos do morro. Nós somos negros. Nós somos mangueirenses, etc. Nós somos. O fato de ter-se espalhado tão rapidamente se explicaria justamente por se tratar de uma geração inteira buscando a cidade. A primeira delas, pós-escravidão.

A pressão do Estado pela organização teria funcionado como um dispositivo detonador, impulsionador dos processos de identidade. A partir dela, não só se inventa uma nova forma de organização – as escolas de samba – como também todo o universo mítico ao redor delas. O fato de o primeiro desfile ter como tema "A Vitória do Samba" já o coloca numa perspectiva histórica, ou seja, há uma luta, há um percurso e o samba resulta vitorioso. Isso, seis anos depois da criação da primeira escola de samba. Assim, apesar de toda a modernidade do samba de então (musicalmente, como já dissemos, as gravações da época nem conseguiam reproduzir o ritmo corretamente), ele já é tomado numa dimensão heróica, mítica, que se impregnará daí por diante. No presente de 1935 o samba já é "um passado de glórias". A geração que o inventou – rapazes na faixa dos vinte anos – já se apresenta como guardiães desse passado imemorial.

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6. Bibliografia

Cabral, S. (1996) As Escolas de Samba no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Lumiar Editora.

Sandroni, C. (2001) Feitiço Decente – Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933. Rio de Janeiro, Jorge Zahar/ Editora UFRJ.

Vianna, H. (1999) O mistério do samba. Rio de Janeiro, Jorge Zahar/Editora da UFRJ, 3a. ed.



[1]_VIANNA, Hermano. O mistério do samba, p.28-36.

[2]_SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente – Transformações do samba no Rio de Janeiro, p. 32-37.

[3]_Idem, ibidem, p. 84-99.

[4]_SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente – Transformações do samba no Rio de Janeiro, p.98.

[5]_Idem, ibidem, p.118–130.

[6]_Idem, ibidem, p. 32.

[7]_CABRAL, Sérgio. As Escolas de Samba no Rio de Janeiro, 1996.

[8]_CABRAL, Sérgio. As Escolas de Samba no Rio de Janeiro, p. 61.

[9]_CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro, p.34.

[10]_VIANNA, Hermano. O mistério do samba , p.151-152.

[11]_CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro, p.41.

[12]_SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente – Transformações do samba no Rio de Janeiro, p. 182-185.

[13]_CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro, p. 41.

[14]_CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro, p. 95.

[15]_Idem, ibidem, p. 95 – 101.

[16]_CABRAL, Sérgio. As escolas de samba no Rio de Janeiro, p. 78.

[17]_Idem, ibidem, p. 83.

[18]_Idem, ibidem, p. 96.

[19]_CABRAL, Sérgio. As escolas de samba no Rio de Janeiro, p. 79.

[20]_SANDRONI, Carlos. Feitiço decente – Transformações do samba no Rio de Janeiro, p.137-142.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Carta à Portela - 1975


Este é mais um documento histórico do samba e da Portela (retirado mais uma vez do site oficial da Azul e Branco). No dia 11 de março de 1975, Candeia, André Motta Lima, Carlos Sabóia Monte, Cláudio Pinheiro e Paulinho da Viola encaminharam este documento ao presidente Carlos Teixeira Martins.

Demontravam, assim, que não aceitavam que a Portela tomasse o rumo da descaracterização que transformou as escolas de samba em "Escolas de Samba S.A". Infelizmente foi em vão...


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À
Diretoria do GRES PORTELA
Rua Arruda Câmara, 81
Madureira – GB

At.: Sr. Carlos Teixeira Martins


Prezados Senhores:

Com o intuito de prestar uma colaboração efetiva à Portela e, de acordo com a solicitação feita pela Presidência, vêm os signatários desta apresentar suas considerações, que julgam válidas, para o necessário aperfeiçoamento das atividades e desempenho de nossa Escola.

O que expomos, no documento anexo, não é o pensamento isolado de qualquer um de nós. É, precisamente, a opinião do grupo que, em discussão franca e aberta, predominou sobre eventual ponto de vista particular. Assumimos, pois, inteira responsabilidade pelas opiniões emitidas.

Em nosso documento procuramos focalizar os aspectos que, pela sua importância dentro da Escola e pelas implicações que possuem com os desfiles de carnaval, devem merecer prioridade no conjunto de providências que, acreditamos, deverão ser tomadas a fim de que a Portela reassuma a posição de liderança que sempre foi sua, por direito e tradição, no cenário do samba e da nossa cultura popular.

Cada um de nós possui uma experiência no trato dos problemas da Portela, muito através do convívio direto com os componentes da Escola. Foi exatamente essa experiência que, aliada aos conceitos, de que comungamos, de respeito ao samba e às nossas tradições que, de uma forma geral, conduziu nossas opiniões.

Acreditamos que os insucessos que vêm ocorrendo com a nossa Portela têm suas razões principais dentro da própria Escola.

Acreditamos que a solução dos nossos problemas depende exclusivamente de nós.

Atenciosamente,

André Motta Lima
Antônio Candeia Filho
Carlos Sabóia Monte
Cláudio Pinheiro
Paulo César Batista de Faria

1 - INTRODUÇÃO

Escola de samba é Povo em sua manifestação mais autêntica!

Quando se submete às influências externas, a escola de samba deixa de representar a cultura do nosso povo.

Se hoje em dia são unânimes opinião e posição contrárias da imprensa em relação à Portela, é porque a Portela, apesar de sua tradição de glória, se deixou descaracterizar pelas interferências de fora. Aceitou passivamente as idéias de um movimento que, sob o pretexto de buscar a evolução, acabou submetendo o samba aos desejos e anseios das pessoas que nada tinham a ver com o samba.

Durante a década de sessenta, o que se viu foi a passagem de pessoas de fora, sem identificação com o samba, para dentro das escolas. O sambista, a princípio, entendeu isso como uma vitória do samba, antes desprezado e até perseguido. O sambista não notou que essas pessoas não estavam na escola para prestigiar o samba. E aí as escolas de samba começaram a mudar. Dentro da escola, o sambista passou a fazer tudo para agradar essas pessoas que chegavam. Com o tempo, o sambista acabou fazendo a mesma coisa com o desfile.

Essas influências externas sobre as escolas de samba provêm de pessoas que não estão integradas no dia-a-dia das escolas. E por não serem partes integrantes dessa cultura popular, que evolui naturalmente, são capazes de se deixar envolver pelo desejo de rápidas e contínuas modificações, que atendam a sua expectativa de sempre ver ‘novidades’. A despeito de algumas boas contribuições deixadas por pessoas que agiam sem interesses pessoais, e pensando no samba, a maior parte dos palpites tratava de submeter as escolas ao capricho dos intrusos. Começou a existir um clima de mudanças baseado no que as pessoas gostariam de ver e isso tudo levou às deturpações e defeitos que tanto atrapalham as escolas de samba, em todos os seus setores.

Atualmente já se notam reações generalizadas contra as apresentações de escolas afastadas da autenticidade. Essas reações estão concentradas, em grande parte, em pessoas capazes de conduzir a opinião pública. São as mesmas que anteriormente divulgavam a ‘novidade’ de cada ano; e o que fosse divulgado e falado como certo, fosse o que fosse, era aceito por todos. Pois essas pessoas esperam agora uma reação contra as deturpações do samba.

Consideramos que este é o momento de fazer a única evolução possível, com o pensamento voltado para a própria escola. Ou seja, corrigindo o que vem atrapalhando os desfiles da Portela, que tem confundido simples modificações com evolução. É preciso ficar claro que nem tudo que vemos pela primeira vez é novo.

E que o novo, que pode servir a uma escola, num determinado momento, pode não servir a outra.

A Portela adotou a Águia porque era o símbolo do que voa mais alto, acima de todos. E, inatingível, a Portela nunca imitava nada dos outros. Sempre criava. Hoje, o que a Portela está fazendo é procurar copiar o que se pensa que está dando certo em outras escolas.

Voltando a olhar o samba por si mesma, a Portela voltará a ter os valores imprescindíveis, que tanto serviram para afirmar sua glória. Enganam-se os que pensam ser impossível recobrar esses valores.

Esses valores foram capazes de fazer com que todos aguardassem a nossa escola com a expectativa de que veriam alguma coisa original. E o original, no momento, é ser fiel às origens. A Portela é a mais acusada quando se criticam deturpações no samba. É necessário ouvir toda a escola.

CRÍTICAS QUE JULGAMOS CONSTRUTIVAS

2.1 - A centralização se tornou demasiada na Portela. As diretorias, de algum tempo para cá, passaram a não mais ouvir as solicitações do componente, nem procurar explicar a ele suas decisões. A organização do Carnaval passou a ficar a cargo de poucas pessoas. Muita gente fica sem saber o que fazer. No desfile, isso se reflete no grande número de diretores responsáveis, que não sabem como agir.

2.2 - O gigantismo, sem dúvida, atrapalha a escola. Todos os setores são prejudicados por ele. É unânime a opinião de que a Portela cansa, porque ninguém agüenta ver um desfile arrastado. No entanto, o gigantismo é uma falha que decorre da própria escola e das influências externas que agem nefastamente sobre ela. Donos de alas conquistam seus figurantes, procurando agariá-los sem atender os verdadeiros interesses da Portela. Faltam medidas administrativas corajosas capazes de eliminar esse problema...

2.3 - O figurinista, ainda que famoso, precisa conhecer a Portela profundamente. Não adianta imaginar figurinos sem levar em conta os componentes da escola. Como resultante, as fantasias têm sido confeccionadas em total desacordo com os figurinos apresentados. Algumas alas tomam a si a iniciativa de escolher suas próprias roupas, sem levar em conta o enredo e o figurino recebido e nenhuma medida punitiva ou preventiva é tomada pela diretoria.

2.4 -
Há anos gasta-se dinheiro para construir alegorias grandiosas. O resultado nunca é o esperado, porque o responsável pelo barracão não está integrado na escola. Os carros são pesados, difíceis de conduzir, quebram e prejudicam a escola. A partir de uma determinada época, generalizou-se a idéia de que a alegoria de mão era uma solução visual que emprestaria leveza e facilidade ao desfile. Na realidade, o que se vê é um obstáculo que não deixa sambar e tira a liberdade de expressão dos sambistas. As alegorias de mão, atualmente, atualmente, se constituem num recurso ilícito para valorizar a participação de alas que não sabem sambar. E, além disso, as alegorias, de mão ou de carro, não podem ser olhadas separadamente como um simples conjunto de julgamento. São antes de mais nada partes integrantes que devem ajudar a contar o enredo e valorizar o desfile da escola.

2.5 - Sob o pretexto de buscar uma comunicação mais imediata, a Portela vem restringindo a liberdade de criação de seus compositores. Além disso, os sambas de enredo vêm sendo escolhidos ao sabor de gostos pessoais e pressões comerciais.

2.6 - Os destaques, quando não constituem parte integrante do enredo, representam um obstáculo ao correto desfile da escola. Eles atrapalham na armação, dimensão e harmonia da escola, pois, invariavelmente, não cantam, separam e quebram a evolução da Portela. Alem disso, a Portela está cheia de destaques intrusos. O número excessivo de destaques na escola só faz prejudicar o bom desempenho da Portela na avenida.

2.7 - Não é possível continuarem os integrantes da escola sem acompanhar de perto tudo o que se passa na Portela. Não é possível que muitos saiam sem saber ao menos como se armar e se portar no desfile, e o que representam no enredo. Sem saber o quanto é importante a sua participação. Os componentes não têm consciência de que são eles a própria escola.

2.8 - A Portela tem deixado de lado seu papel de liderança no samba. A escola vem aceitando todas as contingências do regulamento, sem levar em conta não só seu papel inovador como a sua posição de contribuinte para a própria evolução do samba. Não podemos e nem devemos ficar a reboque de outras escolas, sem assumirmos nossa posição quanto ao destino das escolas de samba, independente de vantagens momentâneas que possamos aferir.

3 - NOSSAS SUGESTÕES


3.1 - Direção

A direção da escola precisa urgentemente separar suas atividades em dois setores: administrativo e carnavalesco.

O setor ‘administrativo’ funcionará na atual foram da diretoria, compreendendo seus atuais encargos acrescidos das tarefas de fortalecimento da organização e do patrimônio da escola, promovendo todas as demais atividades paralelas voltadas para o melhor atendimento dos portelenses (atividades culturais, recreativas e sociais).

O setor ‘carnavalesco’ englobará todas as atividades ligadas ao carnaval, sob a responsabilidade exclusiva de uma ‘comissão de carnaval’, formada com poderes efetivos para a elaboração de todo o planejamento e execução do Carnaval, seguindo um orçamento financeiro aprovado pelo setor administrativo.

A ligação entre o setor administrativo e a comissão de Carnaval será feita por um sistema de representação oficial que garantirá o vínculo e a uniformidade de ação dos dois setores.

O trabalho da comissão de Carnaval só terá efetivo valor para a Portela, se for realizado com a máxima liberdade, dentro de um relacionamento respeitoso e democrático com o setor administrativo da direção de escola.

Assim sendo, todos os encargos relacionados com o Carnaval só poderão ser desempenhados pela comissão, inclusive a divulgação do enredo.

Os componentes da comissão de Carnaval deverão ser selecionados dentre os elementos mais representativos e conhecedores da escola e suas características. Caberá à comissão de Carnaval indicar os diretores que terão responsabilidade direta sobre o desfile, que serão os únicos investidos de autoridade para agir junto à escola. Não serão permitidos diretores de alas que não estejam integrados em suas próprias alas.

3.2 - Gigantismo

Este problema será combatido com a adoção das seguintes medidas: proibição sumária de inscrição de novas alas na Portela; limitação do número de componentes em cada ala; eliminação de alas sem representatividade na Portela; estímulo à fusão de alas de pequeno contigente; criação de um regulamento para as alas que estabeleça, entre outras obrigações, o cadastramento das alas, o ingresso dos componentes no quadro social da Portela e a presença das alas nos ensaios com a bateria, segundo um programa a ser elaborado.

Estas medidas visam limitar o efetivo da escola a 2500 figurantes distribuídos por, no máximo, cinqüenta alas.

No processo de redução do efetivo da escola serão levados em consideração: antiguidade, obediência ao figurino e desempenho nos últimos anos.

3.3 - Fantasias

O figurinista escolhido pela comissão de Carnaval deverá ser obrigado a realizar um sério trabalho de pesquisa em torno do enredo, procurando adaptar a execução dos figurinos aos anseios dos componentes da Portela.

Se possível deverão ser recrutados auxiliares diretos do figurinista entre pessoas que pertençam á escola e que já tenham participado anteriormente de trabalhos desse gênero, capazes de refletir os gostos e desejos dos portelenses.

Para facilitar a fiel execução do figurino por parte das alas, será preparada uma fantasia modelo para cada ala, com indicação de tipos de tecido a serem usados, preços dos materiais e local onde poderão ser adquiridos.

A comissão de Carnaval ficará encarregada da fiscalização direta da confecção por parte das alas.

Deverá ser criado um grupo sob o comando de um representante da comissão de Carnaval, que disponha de amplos poderes para retirar da concentração pessoas estranhas à Portela vestindo fantasias não aprovadas pela comissão de Carnaval.

Esse grupo teria autoridade para controlar também as alas que desobedeçam ao critério de redução.

3.4 - Alegorias

É muito importante a escolha de um artista capaz de dar confecção leve, com material moderno, à concepção dos carros. O artista precisa estar integrado à escola, não criando isoladamente. E deve também formar um grupo egresso da própria escola, que irá ajudá-lo e será aprimorado por ele.

Os carros devem contar o enredo e terão seu número determinado de acordo com as reais necessidades do mesmo. Também as alegorias de mão terão seu número reduzido apenas ao imprescindível à ilustração do enredo.

Vale deixar clara nossa posição: alegorias como fantasias só têm razão de ser enquanto arte popular.

Como existe, por força de regulamento, o caráter de competição, a escola é obrigada a contratar artistas mas, deve, dentro do possível, limitar a criação dessas pessoas ao âmbito da cultura popular, que caracteriza a escola de samba. E lutar para quer, no futuro, integrantes da escola reúnam condições de fazer, eles mesmos, as alegorias e fantasias.

3.5 -
Samba enredo

É preciso urgentemente rever os conceitos criados a partir da idéia de que o samba curto é o mais comunicativo. É preciso dar total liberdade de criação ao compositor, quanto ao número de versos.

A escolha do samba de enredo será feita pela comissão de Carnaval, levando em consideração a opinião geral dos compositores e, também a opinião dos componentes da escola. Terá de ser definitivamente afastada a hipótese de se levar em conta torcidas e interesses na escolha do samba de enredo. A colocação em quadra deve ser útil para mostrar o andamento do samba e a sua adaptação à escola. E, em nenhuma hipótese, deve ser aceita a interferência de pessoas de fora da escola.

A responsabilidade da escolha e da definição dos sambas de enredo que irão para a quadra será exclusiva da comissão de Carnaval. Como norma que facilita e aprimora o contato entre os compositores, será obrigatório o mínimo de dois compositores para cada samba de enredo.

Mas nem só de samba de enredo vive uma escola. A atenção ao trabalho dos compositores anima e eleva a própria escola. Por isso, consideramos de grande valia a abertura de um concurso interno de sambas de terreiro interno, só de compositores filiados à Portela. O samba de terreiro deverá voltar a ser ensaiado no meio da quadra, com prospectos e sem bateria, para dar chance ao compositor de avaliar a reação de seu próprio samba.

Ainda para fortalecimento e levantamento de valores da escola, sugerimos um festival de partido alto, organizado pela Velha Guarda, com todas as implicações de desafio e samba no pé.

Será também importante proibir a entrada de novos compositores, condicionando a filiação á abertura de vagas na ala dos compositores.

Com sentido de melhor representar a escola, os compositores deverão organizar coros masculinos e feminino, com respectivos solistas, a fim de representar a escola em gravações e exibições. Os solistas serão também puxadores oficiais de samba da escola. Além dos coros, será formado um regional oficial.

3.6 - Destaques

O número de destaques precisa ser determinado a cada ano, para atender exclusivamente às reais necessidades do enredo, de acordo com critério da comissão de Carnaval. as pessoas que estão saindo de destaque, se não forem julgadas convenientes á escola, serão convidadas a sair em alas, exceção feita, naturalmente, aos destaques tradicionais da escola. Não deverão ser mais admitidos os destaques de ala.

3.7 - Participação de componentes

As alas, por força de regulamento acima citado, têm de se reunir com maior freqüência com a diretoria. Não só para resolver problemas de estrutura, como também para melhor entender o Carnaval que a escola quer mostrar.

Os diretores responsáveis pelas alas, além do aspecto de trabalho mais íntimo com os componentes, precisam se interessar pelo trabalho de orientação da escola a respeito da maneira mais correta de desfilar.

Para que sejam definidas as atitudes durante o desfile, sugerimos a efetivação de ensaios com alas, nos moldes do desfile (Ex.: sair pelas ruas com a bateria).

Também é importante a volta do autêntico ensaio geral, com a formação das alas em sua ordem de desfile.

Em ambos os casos, as alas precisam ser orientadas sobre a maneira de armar na avenida, evitando a postura do bloco – um vício que vem dos ‘bailes de Carnaval’ em que se transformaram os ensaios da escola.

Além da divulgação referente ao Carnaval, é preciso fortalecer os vínculos entre diretoria e componentes. Os componentes precisam participar mais de todas as atividades da escola. E para ajudar este processo sugerimos a imediata criação de um jornal interno da Portela, de um quadro de avisos na sede e também uma caixa de sugestões e críticas. O importante é que todos, sem distinção, tenham liberdade de opinião e possam se manifestar.

3.8 - Posição externa

A Portela precisa assumir posição em defesa do samba autêntico. Isso não significa um retorno à década de 1930, mas uma posição de autonomia e grandeza suficientes para só aceitar as evoluções coerentes com o engrandecimento da cultura popular. É preciso olhar o regulamento de desfile sob o ponto de vista do samba. É necessário que a Portela lidere um movimento que obrigue a existência de um critério de julgamento autêntico e preestabelecido pelas escolas de samba. A Portela, e as escolas de samba em geral, não podem mais ficar sujeitas ás vontades dos que vivem fora do dia-a-dia do samba.

4 -
CONCLUSÃO

Estamos certos de que as sugestões indicadas constituem a correta solução para os problemas da Portela.

Não nos movem intenções de cargos ou de prestígio pessoal.

Cremos ser necessárias mudanças de estrutura profunda, a cargo de pessoas certas para isso, que terão nosso irrestrito apoio.

Estamos dispostos a apoiar os que se proponham a realizar essas mudanças, que julgamos inadiáveis, e a colaborar na medida de nossas possibilidades, discutindo e aplicando as proposições.

Os signatários desse documento concordam inteiramente com os seus termos e se propõem à sua defesa em qualquer momento, em qualquer condição, a qualquer tempo.

Estamos dispostos à discussão e ao debate que resultem numa posição comum em defesa da autenticidade do samba e da nossa Portela.