quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

CULTURA DO SAMBA E A ESCOLA: UMA APROXIMAÇÃO

LIMA, Augusto César G. e – PUC-Rio / UNESA – auglima@globo.com
GT: Sociologia da Educação / n.14
Agência Financiadora: Sem Financiamento


Uma das questões que provocaram celeuma nestes últimos anos foram os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1997). Um dos aspectos neles abordados de especial relevância para o meu trabalho refere-se ao tema da pluralidade cultural nos chamados “temas transversais”. Tratava-se possivelmente de um reflexo das discussões sobre a necessidade de se pensar o currículo à luz das novas formulações advindas dos debates provocados pela chamada Nova Sociologia da Educação, os Estudos Culturais e o Multiculturalismo. Estes debates, entre outras questões, colocavam a necessidade do diálogo da escola com as culturas de referência dos/as estudantes. O samba é, para o Brasil, juntamente com outros símbolos, uma marca da brasilidade. Tanta importância tem o samba para o contexto brasileiro que, entre outras coisas neste país continental de rica e variada cultura musical, é o ritmo reconhecido como música de caráter nacional. O carnaval brasileiro, que é uma festa pagã com origem no calendário religioso, não tinha samba (Cabral, 1996). Mesmo diante da discriminação a que eram submetidos os negros e mestiços no Rio de Janeiro, o carnaval foi conquistado pelas Escolas de Samba (Cabral, 1996) e hoje é impossível desvincular uma coisa da outra. Mas o samba não se resume às Escolas de Samba e ao carnaval, ele ocupa outros espaços e está presente o tempo todo, ao menos no Rio de Janeiro e em inúmeras outras cidades. É a partir destas constatações que procuro discutir a relação entre escola e o que chamo de cul tura do samba.

Candau (1998a) constata em seu relatório final de pesquisa a dificuldade da escola lidar com a diferença. Nos espaços de conhecimentos sistematizados, como a sala de aula, distancia-se da cultura social de referência dos alunos, o que não favorece processos de interculturalidade (Candau, 1998b) e pode ter conseqüências negativas para a auto-estima dos alunos. 2

Forquin (1992), comenta as relações que podem existir nas sociedades contemporâneas entre o “campo escolar” e o “campo social”, que chamam atenção para o “aspecto arbitrário, o caráter ‘socialmente construído’ das cartografias cognitivas que subjazem à configuração das matérias ensinadas” (p.40). Assim, o modo como são selecionados, classificados, transmitidos e avaliados os saberes ensinados, corresponde à maneira como está organizado o poder dentro de uma sociedade e é uma forma de garantir o controle social dos comportamentos individuais. Quando penso na relação cul tura do samba e escola, penso no questionamento desta construção. Nesta pesquisa investiguei a cul tura escolar/cul tura da escola, o contexto social de referência dos alunos, em particular a cul tura do samba, procurando observar suas relações no espaço escolar de uma determinada escola, situada num bairro com tradição de samba, na cidade do Rio de Janeiro. A observação de campo nos moldes de uma pesquisa etnográfica, em que o pesquisador é o principal instrumento de coleta, foi o caminho escolhido. O contexto O bairro de Oswaldo Cruz passa a existir em função da estação de trem da Central do Brasil, inaugurada em 1898. É um bairro de moradia e no ano de 2000 tinha 35.901 habitantes, sendo 51,8% de brancos, 12,4% de pretos, 35,1% de pardos, 0,1% de indígenas e 0,5% de outra cor (IBGE, 2000). Neste bairro, formado por moradores pobres, muitos vindos do interior do estado e de Minas Gerais e Espírito Santo, havia já nos anos de 1910 festas organizadas por pessoas ligadas a cultos afros. Após as sessões “da Lei”, ocorriam animadas danças com jongo e caxambu. Como freqüentavam estas festas os sambistas do bairro do Estácio, estes levaram a nova maneira de cantar e batucar o samba, que logo tomou conta do bairro, produzindo grande número de compositores. A Escola Azul (nome fictício) foi inaugurada em 1977, atendendo à necessidade da população dos blocos de apartamentos construídos a toque de caixa para receber população de baixa renda removida de algumas favelas da zona sul e norte. Paralela a ela passa um rio que 3 recebe esgoto diretamente e lixo, por vezes exalando forte mau cheiro. Contrariando o senso comum, é uma escola pública com excelente infraestrutura. Os estudantes são oriundos em sua maioria do próprio bairro. O samba dos conceitos: cul tura escolar/cul tura da escola O termo cul tura é polissêmico e se presta a várias abordagens. Para este estudo interessou seus possíveis usos no campo da educação e refutar o uso que se faz no senso comum de uma compreensão enviesada de cultura que encobre relações de poder. O conceito de cul tura escolar é recente na literatura pedagógica brasileira1. Seu aparecimento se deve, em parte, pelas novas e crescentes abordagens na discussão acerca do currículo e do cotidiano escolar, implicando no uso de um conceito que exprimisse as questões de estudo. Compreendo que o que possibilita os modos distintos de
construção social da realidade é a socialização que ocorre em várias instâncias sociais. Assim, compreendendo educação em seu aspecto
amplo como formação e socialização, além da escolarização, há uma íntima relação com a cul tura (Forquin, 1993). E a função fundamental da escola é “transmitir cultura” dizem Moreira e Candau (2003, p.160). Porém, como fazem estes autores, a questão que se coloca é: que cultura? 

Assim, diz Candau (2000, p.68): Penet rar nesta rede de relações ent re a cul tura escolar , cul tura da escola, cul turas sociais de referência, seus pontos de encont ro, ruptura e confl i to é fundamental para promover um processo educat ivo entendido como prát ica social em que estão presentes as tensões inerentes a uma sociedade como a nossa que vive processos de profunda t ransformação. É a própr ia concepção da escola, suas funções e relações com a sociedade, o conhecimento e a const rução de ident idades pessoais e cul turais que está em questão. Torna-se imprescindível hoje incorporar as questões relat ivas à ‘desnatural ização’ da cul tura escolar e da cul tura da escola na reflexão pedagógica e na prát ica diár ia das nossas escolas. Considero que as formulações de Forquin (1993, p.167) nos ajudam a iniciar esta discussão. Para este autor, cul tura escolar se pode defini r como o conjunto dos conteúdos cogni t ivos e simból icos que, selecionados, organizados, ‘normal izados’, ‘rot inizados’, sob o efei to dos 1 Pesquisadores do campo da Histór ia da Educação local izam nos anos 1990 as
produções brasi lei ras que tomam como referência a noção de cul tura escolar, tanto como categor ia de anál ise ou como campo de invest igação (FARIA FILHO et al l i , 2004) . 4 imperat ivos de didat ização, const i tuem habi tualmente o objeto de uma t ransmissão del iberada no contexto das escolas. Forquin (1992; 1993) nos diz que a escola seleciona uma ínfima parte do que a humanidade produziu para que seja transmitido às gerações futuras. A seleção do que será transmitido – a cul tura escolar – está intimamente ligada com os dispositivos cognitivos e simbólicos que estão em ação no campo social, o que não quer dizer que isto signifique simples reflexo da cultura dominante. Gimeno Sacristán (1995; 1996) vê a cul tura escolar como algo mais do que conteúdos cognitivos. Entende que “a cultura escolar é uma caracterização ou, melhor dito, uma reconstrução da cultura, feita em razão das próprias condições nas quais a escolarização reflete suas pautas de comportamento, pensamento e organização” (1996, p.34). A prática educativa é elemento constituinte que explica a cul tura escolar.
Nesta discussão, ele diferencia currículo formal do real . Entende por currículo formal aquilo que consta nos documentos oficiais sobre objetivos, conteúdos e temas que devem ser tratados na sala de aula. Por currículo real , aquele que propõe e impõe todo um sistema de comportamentos e de valores além dos conteúdos. Outro autor, Pérez Gómez, propõe considerar a escola como um espaço ecológico de cruzamento de cul turas, cuja responsabi l idade especí fica, que a dist ingue de out ras inst i tuições e instâncias de social ização e lhe confere sua própr ia ident idade e sua relat iva autonomia, é a mediação ref lexiva daqueles influxos plurais que as di ferentes cul turas exercem de forma permanente sobre as novas gerações, para faci l i tar seu desenvolvimento educat ivo (Pérez Gómez, 2001, p.17) . Segundo ele, é este cruzamento de culturas que dá sentido e consistência ao que os/as estudantes aprendem na vida escolar e aponta a realização de uma “mediação reflexiva” pela escola entre as propostas da cul tura crí t ica, alojada nas discipl inas cient í ficas, ar t íst icas e fi losóficas; as determinações da cul tura acadêmica, reflet ida nas definições que const i tuem o cur r ículo; os influxos da cul tura social , const i tuída pelos valores hegemônicos do cenár io social ; as pressões do cot idiano da cul tura inst i tucional , presente nos papéis, nas normas, nas rot inas e nos r i tos própr ios da escola como inst i tuição especí fica; e as caracter íst icas da cul tura experencial , adqui r ida individualmente pelo aluno at ravés da exper iência nos intercâmbios espontâneos com seu meio (Pérez Gómez, 2001, p.17) . 5  Ele discute o conceito de cultura escolar sob vários ângulos quando se refere ao cruzamento das culturas apontadas no espaço escolar. Este autor amplia a compreensão do conceito ao identificar as várias culturas que se cruzam, deslocando também o conceito de cul tura da escola usado por Forquin (1993).

Candau (2000, p.76) salientou que ambas as dimensões dos conceitos permitem uma interpenetração, de modo que cada uma delas está presente na outra: Somos conscientes da interpenet ração destas duas dimensões – a cul tura da escola está presente na cul tura escolar e vice-ver sa – mas, para efei tos da pesquisa de campo, pr ivi legiamos espaços especí ficos para observar e anal isar uma e out ra. Cul tura escolar é, na verdade, um conceito estruturante. O conceito de cul tura da escola é estruturado pelo conceito de cul tura escolar. De modo que, existindo diferença conceitual entre cul tura escolar e cul tura da escola como quer Forquin (1993), há dificuldades em estabelecer uma delimitação precisa entre ambas. Parto da definição de Forquin (1993, p.167) de cul tura da escola: a escola é também um ‘mundo social ’, que tem suas caracter íst icas de vida própr ias, seus r i tmos e seus r i tos, sua l inguagem, seu imaginár io, seus modos própr ios de regulação e de t ransgressão, seu regime própr io de produção e de gestão de símbolos. Primeiramente, este enfoque é o reconhecimento das características gerais do espaço escolar em contraposição a outros espaços e ambientes, sendo uma peculiaridade da instituição escola, “no sentido que se pode também falar da ‘cultura da oficina’ ou ‘cultura da prisão’” (Forquin, 1993, p.167) e não deve ser confundida, segundo o autor, com a cul tura escolar. Mas numa conceituação ampliada, é um ângulo que permite observar uma certa peculiaridade e singularidade de uma unidade escolar, realçando suas particularidades. Tal conceituação faz sentido, em minha interpretação, porque em parte é observar como se real iza a cul tura escolar em uma unidade escolar, de uma escola em particular. É um ângulo que permite ver a peculiaridade da instituição escola, daquele “mundo social”, fazendo emergir as diferenças importantes para compreensão de um processo de escolarização. 6 Assim, para efeito da minha discussão, e levando em conta as contribuições citadas, que enriquecem nossa percepção do espaço e do cotidiano escolar, trabalho com o conceito ampliado de cul tura escolar que está presente em Pérez Gómez (2001) e Gimeno Sacristán (1995, 1996), e reconhecendo a forte relação entre este conceito e o de cul tura da escola, considero mais proveitoso operar com a interpenetração dos conceitos na forma de cul tura escolar/cul tura da escola. Uma cultura social de referência: a cul tura do samba Nesta pesquisa focalizo um tipo de cultura presente no contexto onde está inserida uma unidade escolar. Procuro entender se e como uma cul tura social local cruza aquele espaço escolar. Esta cultura é a cultura do samba. Ela pode ser vista como um “conjunto de fenômenos socioculturais” (Velho, 1994), que contrasta com outros conjuntos como cul tura punk, cul tura Hip-Hop, por exemplo. O ponto de partida desta cultura é o gênero musical samba e suas modalidades, como samba-enredo, samba-de-partido-alto, samba-canção, samba- horo, samba-exaltação, samba-de-breque, samba-duro, na cidade do Rio de Janeiro. É a música e tudo que ela significa que organiza esta cultura. Pode-se dizer também que é uma expressão da cul tura popular brasileira, peculiarmente desenvolvida na cidade do Rio de Janeiro, principalmente marcada pela criação por parte de pessoas de camadas populares, a maioria negra, das áreas centrais aos subúrbios e favelas, ainda que não resumidas a estes extratos e espaços sociais (Vianna, 1995). Não é homogênea, como nenhuma cul tura o é (Ortiz, 1994). Musicalmente mantém proximidades com ritmos como jongo, caxambu e chorinho, e partilha costumes com apreciadores destes ritmos, até porque muitos compositores e instrumentistas fazem parte da produção de todos estes gêneros musicais. A presença fundante dos afro-brasileiros no samba é inquestionável (Cabral, 1996; Sodré, 1998) e constitui parte da história desta população. Sansone (2003) reconhece que: “ao cruzar o Atlântico Negro, a música desempenha um papel essencial na construção da 7 ident idade negra, tanto na versão tradicional quanto na versão contemporânea da cultura negra” (Sansone, 2003, p.204, grifos meus). Uma característica marcante é o desenvolvimento de algumas formas particulares de sociabilidade, tais como aquelas possibilitadas pelas Escolas de Samba,  rodas de samba, almoços comunitários dos sambistas e suas famílias etc., em que o corpo ganha um espaçopresença. Assim como em termos musicais a síncope “é a ausência no compasso da marcação de um tempo (fraco) que, no entanto, repercute noutro mais forte” (Sodré, 1998, p.11), a síncope incita aqueles que escutam a preencher o espaço vazio com uma marcação do corpo através do seu balanço, das palmas, dos meneios, da dança (ibidem)2. O samba nos ensina a marcar nossa existência com o corpo e não só com a razão. A cul tura do samba é composta de vários elementos, que se enriquecem constantemente e lhe dão identidade. A vivência nesta cultura implica uma relação com o mundo que a toma como uma das referências de vida e de construção simbólica da realidade. Podemos identificar alguns aspectos do processo de realização da cul tura do samba que implicam em sua construção e reconstrução: a) a mediação cultural – efetivada por grupos e indivíduos de culturas diferentes, possibilitando interligações entre culturas diferentes; b) identidade cultural – afirma-se uma identidade carioca e brasileira; c) afirmação social da população negra através de uma maior visibilidade positiva; d) memória coletiva; e) solidariedade, reforçando os laços de amizade e ajuda mútua; f) sociabilidade, facilitando processos de integração social; g) anti-racismo, inexistência de preconceitos raciais e favorecimento de integração racial; h) tradição e renovação; i) contradições e conflitos, fruto das relações sociais, econômicas e culturais que historicamente vive a população carioca; e j) socialização dos saberes e práticas referentes ao samba e também a ethos, códigos, estratégias de sobrevivência, que constituem um processo educativo. 2 O samba, ao conquistar parcelas não negras, desenvolveu out ras formas de uso do corpo na população brasi lei ra. O que era antes caracter íst ica somente da população negra foi também se tornando da população não negra, numa troca cultural que caracteriza a cultura do samba. 8  Tramonte (2001) diz que as Escolas de Samba são ‘locus’ educativos das classes populares e aponta seis processos pedagógicos das Escolas de Samba: pedagogia da ação social, pedagogia da ação política, pedagogia dos valores éticos e morais, pedagogia da ação escolar, pedagogia da ação cultural e pedagogia da arte. A cul tura do samba está lastreada num fazer histórico e numa relação com o mundo que fazem daqueles que constroem e pertencem a esta cultura, sujeitos históricos. Ela faz parte dos modos de vida de parte considerável da população carioca e se constitui em parte de sua identidade cultural. A Escola Azul na passarela As escolas, numa analogia aos desfiles das escolas de samba, fazem seu “desfile” todos os dias em que têm atividades. Este “desfile” pode ser visto nas salas de aula – o epicentro da cul tura escolar – mas também em todos os elementos que concorrem para que elas existam: as regras, normas, rotinas, currículo explícito e implícito, as atividades dos atores e as relações que se estabelecem no cotidiano escolar, constituindo a cul tura escolar/cul tura da escola, que sintetizo a seguir alguns de seus elementos. Em termos curriculares, como toda escola municipal da cidade do Rio de Janeiro, o currículo segue a linha do Multieducação: propõe que, cada professor , e equipes escolares repensem e replanejem suas ações pedagógicas visando uma sociedade mais justa e democrát ica, na qual os Princípios Educat ivos do Meio Ambiente, do Trabalho, da Cul tura e das Linguagens ao se ar t icularem com os Núcleos Concei tuais da Ident idade, do Tempo, Espaço e da Transformação viabi l izem at ravés da ação escolar , a cont r ibuição indispensável para a real ização deste desejo (SME, 1996, p.112) Na concepção do Multieducação, a articulação entre os Princípios Educativos (que partem de uma visão holística de meio ambiente, trabalho, cul tura e l inguagens) e os Núcleos Conceituais (transformação, tempo, espaço e identidade) propostos, possibilita à escola contribuir para uma sociedade mais justa, democrática e, conseqüentemente, promovendo a cidadania. Neste raciocínio estaria contemplada uma nova prática pedagógica, embora mantendo um currículo disciplinarizado. Este fator, como nota Araújo (2003), tende a manter uma concepção 9 cartesiana, dificultando uma pedagogia centrada no projeto políticopedagógico que a escola busca implementar. Na Escola Azul, embora tenha sala de aula própria para música e dança e o Núcleo de Adolescentes ensaiar street dance no pátio, não há, por parte da disciplina de Educação Física, nenhuma atividade que contemple este tipo de trabalho com o corpo, como capoeira, samba, funk, hip hop, jongo etc. Gariglio (2004, p.168) mostra como “os ambientes para a EF [Educação Física] são organizados em função das regras e dos princípios oriundos do âmbito esportivo”. Assume-se códigos próprios da instituição esportiva que o autor resume em: “princípios de rendimentos atlético-desportivo, competição, comparação de rendimentos, regulamentação rígida e formal, racional ização de meios e técnicas” (p.169, grifos meus). O fato de não haver o tradicional recreio aponta para a intenção de disciplinar, condicionar, regular, controlar, “organizar” e “administrar” os/as estudantes e a escola. A diretora justifica o fim do recreio (desde 1998) argumentando que se serve café da manhã e depois almoço na saída do turno da manhã e na entrada do turno da tarde, com lanche na saída deste último turno, e acrescenta: “acabamos com aquela correria” (grifo meu), dizendo que conversou com professores e responsáveis para implantar tal procedimento. Se tal discussão foi feita devidamente não consegui identificar, mas durante toda minha observação e entrevistas, apenas um aluno reclamou a falta de recreio. Com relação à composição racial, é muito forte a presença negra (ou afro-brasileira) na escola. Estão presentes também muitas crianças fruto de relações inter- aciais, pelo tom da pele, tipo de cabelo, pelos fenótipos diferenciados observados entre as crianças e as/os responsáveis  que as acompanham. Várias alunas negras usam penteados afros. Embora não fazendo levantamento estatístico através de censo ou amostra, visualmente é impactante a maioria negra nesta escola. Para uma escola com uma participação tão alta de estudantes negros/as, a questão racial toma uma importância ainda maior. Como aponta a pesquisa de Candau (2003), existem evidências de processos de discriminação, às vezes sutis, nas práticas sociais e 10 educacionais. O silenciamento da questão racial pela cul tura escolar/cul tura da escola é um fato na Escola Azul, evidenciado, por exemplo, pelo resultado da avaliação institucional, onde o problema apareceu para a surpresa das professoras que estavam na reunião do Centro de Estudos: “eu fiquei muito preocupada com a questão do racismo!”, disse a professora de História, acompanhada pela professora da sala de leitura: “é verdade, eles são negros, mulatos, mas criticam os outros por serem negros!”. Contudo, o assunto não passou destas observações e exclamações. Cavalleiro (2001), refutando a idéia de que falar de racismo em ambiente escolar seja lamentação, mostra que é importante dar visibilidade a esta problemática que atinge crianças e adolescentes negros. Ela afirma que “nas escolas, o racismo se expressa de múltiplas formas: negação das tradições africanas e afro-brasileiras, dos nossos costumes, negação da nossa filosofia de vida, de nossa posição no mundo... da nossa humanidade” (Cavalleiro, 2001, p.7). O silêncio agrava-se também pelo fato da existência hoje de uma crescente produção acerca da questão racial, especificamente no campo da Educação (Miranda, Aguiar e Di Pierro, 2004). A Escola Azul e a cultura do samba A Escola Azul realizou, entre 1999 e 20023, no mês de junho, desfiles carnavalescos nos moldes de escola de samba – os “desfiles ecológicos” – pelas ruas do bairro, tendo como “enredo” o meio ambiente. Entretanto, este dado não é, necessariamente, o que parece à primeira vista: uma integração da cul tura do samba à cul tura escolar/cul tura da escola de maneira intencional. Trabalhando a questão do meio ambiente, o desfile envolveu várias/os professoras/es e suas disciplinas. Em Português, através de análise de sambas enredo, fazendo paródia de um deles para se cantar durante o desfile; em Economia do Lar trabalhou na confecção das fantasias; em Ciências e Técnicas Agrícolas também aproveitou o 3 Esta pesquisa foi real izada em 2003/2004. 11“enredo” na temática do meio ambiente. A conscientização sobre a questão ambiental e particularmente o problema da poluição do rio que passa em frente à escola foram aspectos centrais dos desfiles. A proposta da Escola Azul de trabalhar com projeto a possibilitou recorrer a um “desfile ecológico” para educar sobre o meio ambiente, numa atitude inovadora e audaciosa para as práticas educacionais da escola pública, que requer engajamento da direção, professoras/es, estudantes e apoio da comunidade do bairro e das/os responsáveis. O resultado foi a realização de uma teatralização (esta pode ser uma definição para o evento) do tema do meio ambiente como um desfile de escola de sambas. Mas ao teatral izar um desfile de escola de samba no bairro, com o tema do meio ambiente, podemos afirmar que a escola trabalhou com uma cul tura social de referência dos/as alunos/as? Ao analisá-la do ponto de vista de uma atividade teatralizada, estou pondo ênfase em que a escola deu mais importância ao tema que quis apresentar e não ao modo, ao processo que leva à educação. Para termos uma idéia da diferença entre teatralizar e lidar com os saberes da cul tura do samba, aponto, por exemplo, a não existência da bateria, a “alma” de uma escola de samba. Nas quatro edições, em nenhuma delas o desfile ecológico teve bateria, mestre-sala e porta-bandeira e passistas, alguns dos elementos fundamentais construídos pela cul tura do samba para um desfile. Chamo atenção para estes aspectos porque têm grande implicação: significa – na atividade realizada pela Escola Azul – que o mais importante é a apresentação do tema e não o modo como se educa. Esta é uma discussão conhecida no campo da educação. O tema ou o conteúdo é fundamental, mas sabe-se que também importa muito como se educa. Os saberes desenvolvidos na escola de samba, por exemplo, com relação à arte (combinação estética, equilíbrio das cores, angulação e perspectiva das alegorias etc.) podem ser aplicados, inclusive de uma forma interdisciplinar, com os/as estudantes, num processo que elabora conhecimentos. Do modo como se fazia não havia preocupação com os saberes construídos pelos sambistas, no sentido de entender a cul tura do samba como produtora de saberes, de conhecimento, não apenas como suporte 12 ou atividade lúdica, passível de ser teatralizada. Da maneira como foi realizada, como uma bela, criativa e interessante ilustração da forma de trabalhar com projeto, pode ser também interpretada como uma forma da escola lidar com a cul tura popular, como diz Canclini (1997), apenas com os seus objetos, suas coisas, deixando de lado os agentes sociais e os processos, fazendo uma reificação da cul tura do samba. Não se percebe a importância da instituição Escola de Samba para o Brasil e para o bairro, assim como os saberes ali produzidos. Uma contradição que é fruto da força que tem a cul tura escolar/cul tura da escola, que resiste aos elementos que a ela não pertence. A professora de alfabetização, por exemplo, falando da questão do meio ambiente, tão discutida na escola, diz que “o nosso maior carrochefe para explicar isso é o desfile ecológico. Há uma participação incrível de pais. Têm pais que faltam ao trabalho. Pais que eu digo, assim, responsável : pai, mãe, avó, tia, responsável pelo aluno”. Esta professora, contudo, ao trabalhar conteúdos em sala de aula, em que alguns exercícios estavam ligados ao som da letra “m”, do tipo que completa a frase, assim como ditado com palavras como bombom, tampa, bombeiro etc, em nenhum momento usou palavras como samba ou bamba, que são comuns no universo do bairro de Oswaldo Cruz. Apesar de poucas manifestações espontâneas sobre sua cultura musical na escola – nos momentos de espera para as aulas de educação física, algumas garotas negras faziam passos de funk, um garoto afrobrasileiro fazia batucada imitando a batida de instrumento de percussão – os/as estudantes têm suas preferências que se caracterizam por serem plurais, como mostram alguns depoimentos: aluna negra da 7ª série, “Gosto de Hip-Hop, não gosto muito de funk, gosto de música gospel , dança contemporânea, como eu faço: street dance, balé, pagode, samba...”; aluna da 8ª série, branca, “Eu gosto muito de música negra, americana e brasileira”; outra aluna da 8ª série, branca, “Um pouquinho de cada coisa: funk, Hip-Hop, axé, samba, pagode, tudo”; aluna da 6ª série, negra, “Gosto de samba, funk, gosto de Hip-Hop”; aluna negra, 7ª série, explica porque não gosta de samba, “samba é do tempo da minha avó e pagode eu gosto porque canta músicas românticas”. 13 Cultura do samba, culturas juvenis e mídia Estes depoimentos trazem uma reflexão relacionada à hipótese inicial da pesquisa, que considerava presente no bairro e por extensão no espaço da escola, através de seus/uas alunos/as oriundos do bairro, de uma cul tura do samba. Embora existam marcas da existência desta cultura na escola, pela relação de várias/os professoras/es, diretoras, responsáveis, com o samba, é fato que existem cul turas juvenis, em que o samba mais tradicional (seja na forma de samba-enredo, seja na forma de “samba de raiz”) está pouco presente e não é valorizado, tendo espaço quase que somente o chamado “pagode”, designação dada pela indústria fonográfica e pela mídia, principalmente a televisiva, para os sambas com estilos mais “românticos” ou coreografados dos grupos que surgiram no final da década de 1980 e fizeram enorme sucesso nos anos 1990, como Raça Negra, Raça, Só Pra Contrariar, Negritude Jr, Molejo etc, tendo ainda continuidade nos dias de hoje, embora sem o mesmo sucesso de antes. É preciso reconhecer a existência de cul turas juvenis, que para Reguillo (2004, p.5) são um conjunto heterogêneo de expressões e prát icas sócio-cul turais cuja especi ficidade é definida pela at r ibuição que os própr ios jovens fazem a uma cer ta cor rente cul tural (por exemplo, o movimento hippie, que pode ser considerado como um precur sor destes processos) cujos componentes básicos são a ideologia, o est i lo (ou dramat ização da ident idade) e os consumos cul turais (música, l i teratura, cinema, etc. ) . Em um artigo que discute as cul turas juvenis como um campo de estudo, Reguillo (2003) reconhece o caráter de categoria construída do termo juventude, mas aponta que as categorias são ao mesmo tempo produtos do acordo social e produtoras do mundo. A mesma compreensão tem Dayrell (2003, 49): “o tempo da juventude, para eles, localiza-se no aqui e no agora, imersos que estão no presente”. O funk “é uma expressão cultural juvenil centrada no coletivo da música”, diz Sansone (2004, p.174), em pesquisa desenvolvida no Rio de Janeiro, Salvador e Belo Horizonte. “O funk diz respeito sobretudo aos jovens de classe baixa, negros e mestiços em sua vasta maioria, mais comumente rapazes do que moças, e na faixa etária de 13 a 20 anos” 14 (ibidem). O uso de determinadas roupas e tênis de marca, visual surfista misturado com elementos de trajes de Hip-Hop estadunidense é uma das características dos funkeiros (Herschmann, 2000; Sansone, 2004). Um movimento que cresceu rapidamente e, apesar do preconceito e perseguição da mídia por largo tempo (Herschmann, 2000; Vianna, 1997) está hoje estabelecido no mercado fonográfico e midiático. Neste início do século XXI o Hip-Hop tem aumentado sua influência na cul tura juveni l carioca (e não só nela), ainda que haja uma certa confusão na definição do que é Hip-Hop. Isto se deve à avalanche de filmes no cinema e na TV, além de seriados, videoclipes (Herschmann, 2000), e pessoas famosas gravando rap. Também alguns ritmos brasileiros que tiveram grande divulgação pela mídia lograram enorme sucesso, como o “sertanejo”, o “axé” e o “pagode”. A força da cultura midiática atinge a todos, principalmente as crianças e os adolescentes de hoje. Em Oswaldo Cruz não é diferente. Cerca de 22% da população do bairro situa-se entre 5 e 19 anos. São gerações formadas e em formação com enorme presença da mídia, principalmente a televisão, que apresenta as cul turas juvenis que jovens tendem a se sentir ligados sob pena de estarem “fora do contexto”. Nestas cul turas juvenis, que têm características próprias de como se comportar, formas de vestir, falar e objetos a consumir, a música tem muita importância. O que a mídia veicula é o que está na moda ou passa a ser moda. Curtir a música da moda é curtir a música da sua geração. Isto constitui uma demarcação identitária. Outro aspecto das cul turas juvenis é seu não apego à tradição (Herschmann, 2000). Para os jovens seu ser e fazer está ligado no presente, e o mercado captou perfeitamente este aspecto (Dayrell, 2003; Reguillo, 2003, Sansone, 2003 e 2004). A mescla, o hibridismo, são constantes, assim como a aceitação do novo. Ainda outro aspecto das cul turas juvenis refere-se ao fato dos jovens não ficarem presos a territorialidades, o que lhes permitem mais e diferentes contatos, trocas culturais que relativizam sua relação com o local. No bairro de Oswaldo Cruz sempre houve rodas de samba, algumas delas atraindo gente de vários lugares da cidade. Contudo, em termos de faixa etária, nota-se uma insignificante presença de jovens abaixo dos 20 15 anos de idade. Mas na maior festa do bairro, o “Pagode do trem”, um evento organizado por sambistas “de raiz” que ganhou projeção na mídia, aglutina-se milhares de pessoas de diferentes idades e vários lugares da região metropolitana. É uma atividade que a cada ano cresce mais. A população tem orgulho da festa e participa massivamente. Esta atividade resgata, na compreensão de seus organizadores e também dos moradores, a tradição do samba e chama atenção para o bairro de sua identidade e potencialidade. É uma festa que afirma a cul tura do samba no bairro. Assim, procurei mostrar acima que a cul tura do samba em algum nível permeia o espaço escolar e os atores da Escola Azul. O “desfile ecológico”, ainda que sem a intencionalidade claramente explicitada e da percepção da relação com uma das identidades culturais do bairro, é uma tentativa de diálogo da escola com uma das cul turas de referência dos/as alunos/as. A observação e as entrevistas com os/as estudantes, não colocaram em relevo uma grande ligação daqueles/as alunos/as com a cul tura do samba, uma vez que estão inseridos em várias culturas musicais e juvenis. Por outro lado, no bairro e no restante da comunidade escolar, as/os responsáveis por alunos/as, as diretoras e as/os professoras/es da Escola Azul, revelaram em algum nível, sua relação com a cul tura do samba. Assim, considerando todos estes aspectos, podemos concluir que existe uma relação, que classifico como fraca, de tentativa de diálogo entre a cul tura do samba e a Escola Azul. Desta maneira, considero ser um exagero af irmar que a Escola Azul é o si lêncio da batucada. Mais apropriadamente, poderíamos dizer que a escola está ouvindo a batucada, que está lá fora... A escola e o samba: considerações finais A escola tem como papel o desempenho de algumas funções que não são realizadas por outras instâncias. A socialização, a instrução e a educação, são correlacionadas e levadas à prática através de uma sistematização de informação selecionada e ordenada, que busca dar sentido e possibilitar conhecimentos. A seleção dos conteúdos está orientada para aqueles saberes legitimados. Mais do que isto, os conteúdos e a prática pedagógica estão fortemente orientados por uma 16 cul tura de transmissão de conhecimentos e uma cul tura de interação entre os atores que vem a ser a cul tura escolar/cul tura da  escola, quase impermeável ao que vem de fora. Conseqüentemente, a cul tura escolar/cul tura da escola resultante tende a ser monocultural e homogeneizadora. Desse modo, entre os muitos questionamentos à cul tura escolar/cul tura da escola que se vê nos dias de hoje, está o não reconhecimento da pluralidade cultural da população brasileira. Uma realidade multicultural que se insiste que a escola reconheça e com ela dialogue. Neste sentido, o samba – ou a cul tura do samba – pode ser considerado como elemento significativo para o diálogo num local como a cidade do Rio de Janeiro. Contudo, é preciso levar em conta as especificidades do papel da escola. Existe uma tradição da cul tura escolar/cultura da escola centrada nos saberes considerados socialmente significativos, onde crianças e jovens podem adquirir disposições e competências diferentes daquelas que podem obter espontaneamente e ao acaso, e que não são obtidos em outros lugares. Ou seja, é na escola que se tem acesso a estes saberes, principalmente nas camadas populares. A questão é – e sempre será – quais são e por que são determinados saberes selecionados e outros não. Por outro lado, é preciso reconhecer as complexas redes de comunicação e contatos no mundo atual, o poder de influência da mídia e a existência de inúmeras cul turas juvenis, onde a territorialidade, em termos culturais, perde sentido. Isto nos ajuda a re-situar o olhar, complexificando a análise, ao pensar as relações entre a cul tura escolar/cul tura da escola e uma cul tura social de referência, numa metrópole do século XXI como a cidade do Rio de Janeiro. Este enredo, podemos dizer, está em aberto.

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