quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

O SAMBA DE BUMBO EM PIRAPORA: CONSTRUÇÃO DE UMA EXPRESSÃO?


por Fernanda de Freitas Dias*


RESUMO:

Este artigo apresenta alguns resultados parciais obtidos em minha pesquisa de mestrado. Assim, aponto um panorama histórico sobre o samba de bumbo na cidade de Pirapora do Bom Jesus, interior de São Paulo, bem como suas intersecções com o samba na cidade de São Paulo. Também, busca-se problematizar alguns aspectos, os quais podem esclarecer o processo de desenvolvimento do samba de bumbo de Pirapora enquanto manifestação cultural antes reprimida e estigmatizada pelos órgãos oficiais e atualmente exaltada pela prefeitura da cidade e por sambistas envolvidos com o samba paulista. 

PALAVRAS-CHAVE: Samba; Samba Rural; Samba de Bumbo; Samba Paulista.

ABSTRACT:

This article shows some partial results gained in my Master Degree research. So, I point a historical viel about the bumbo samba in the city of Pirapora do Bom Jesus, inside of São Paulo, and also their intersections with the samba of São Paulo city. Besides, it fetches to make a problem with some aspects, that can clear up the process of development of the bumbo samba in Pirapora until it comes a cultural expression before reprimand and branded by the oficial body and nowadays overexcited by the town hall city and by sambistas involved with samba, considering the atual conception around Pirapora as the “ samba´s cradle” paulista.

KEY-WORDS: Samba; Rural Samba; Bumbo Samba; Paulista Samba.


Objetivos

Os objetivos do presente artigo são: realizar um breve histórico sobre o desenvolvimento do samba de bumbo no Estado de São Paulo e na cidade de Pirapora do Bom Jesus; problematizar a concepção vigente da cidade de Pirapora enquanto “berço” do samba paulista; apontar para algumas mudanças, re-significações, pelas quais tem passado o samba de bumbo na localidade.


Justificativa

O estudo do samba em uma cidade pequena do interior paulista, como Pirapora do Bom Jesus, mostra-se relevante, pois nos permite apreender uma visão multifacetada e * Mestranda em Música, sub-área musicologia/etnomusicologia, pelo Instituto de Artes da UNESP. Pesquisa fomentada pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
relativizada do samba no Brasil. Isto devido ao fato da maioria da literatura acadêmica, sobre o tema, se inclinar para o estudo do samba no Rio de Janeiro e na organização das grandes escolas de samba cariocas e paulistas, sendo que este se manifesta em diversas regiões do país. Exemplos disso são o samba de roda na Bahia e o samba rural do interior de São Paulo.
Assim, poucos estudos são dedicados ao samba produzido no interior paulista, região com organizações sociais e tradições peculiares. Com exceção de poucos trabalhos1, a maioria das pesquisas produzidas na área, remete-se ao início do século XX, e não coloca em questão as re-significações pelas quais passou o samba rural paulista, inserido em um outro contexto, com diferentes formas de significações e inserido em um cenário de constantes mudanças ocorridas no período da pós-modernidade. Mário de Andrade (1937) realizou um estudo etnográfico sobre esse tipo de samba em São Paulo nos anos de 1931, 1933, 1934 e em Pirapora do Bom Jesus no ano de 1937. Em Pirapora fez um levantamento das músicas tocadas pelos sambistas, dos instrumentos utilizados na execução do samba, e descreveu o alojamento onde permaneciam os negros nos dias de festa, entre outros aspectos. Enfim, foi feito um trabalho descritivo (semelhante ao trabalho de Mário Vagner Carneiro da Cunha), sem uma análise mais aprofundada dos fatos e dos elementos simbólicos que a manifestação encerrava naquele contexto. A presente pesquisa, dessa forma, permitiria uma atualização na área de estudos sobre o samba rural paulista, levando em consideração o processo histórico e sócio-cultural no qual está envolvido, problematizando a questão dessa manifestação em Pirapora do Bom Jesus, não se restringindo ao estudo do samba somente nos grandes centros industriais
brasileiros.


Fundamentação teórica

O objetivo maior deste trabalho é o estudo do “samba de bumbo” em Pirapora do Bom Jesus, cidade situada a 50 quilômetros da capital paulista. Para a análise do samba de bumbo em Pirapora parte-se da história do samba no Estado de São Paulo e também na cidade de São Paulo.
O samba de bumbo surge nas fazendas de café do interior paulista no século XIX, sendo introduzido na capital paulista na passagem no século XIX para o século XX, quando ocorre a migração de negros, ex-escravos, para capital em busca de melhores condições de vida. O termo “samba de bumbo” é apontado por MANZATTI (2005), em detrimento do termo tradicionalmente usado “samba rural”. Isto porque o samba realizado tanto nas cidades no interior, como na capital, já está, há muito tempo, incluído em ambiente urbano. Outra razão pela utilização do conceito, é o fato de o bumbo ser o elemento, instrumento, que diferencia este gênero dos demais sob a denominação “samba”. Um instrumento muito presente em músicas nordestinas, bandas de Zé Pereira, o bumbo possui ascendência ibérica, sendo apropriado e re-significado pelos negros agentes produtores do samba de bumbo:

1 Ver Manzati (2005). Em sua dissertação de mestrado, o autor realiza um estudo sobre o samba de bumbo no Estado de São Paulo, em suas diferentes modalidades nas cidades do interior paulista, e coloca as cidades em que o samba de bumbo ainda hoje é praticado. “O Bumbo é importante, também, não só por sua presença curiosa, que ainda precisa ser explicada do ponto de vista histórico, uma vez que representou o abandono dos tradicionais tambores de tronco, realizando uma passagem com muitas implicações para a própria timbrística da música a ser realizada, mas principalmente, porque é ele quem conduz toda a rítmica da manifestação, além de centralizar, como um magneto, todos os outros instrumentos e participantes da roda, que a ele se dirigem para iniciar ou interromper uma música. Alguns sambistas atribuem ao Bumbo forças religiosas ou sobrenaturais, relação idêntica à construída com os atabaques nos cultos afro-brasileiros e, antes disso, com todos os tambores mestres das danças afro-brasileiras ancestrais.” (MANZATTI, p. 20, 2005)

O samba de bumbo teve diferentes denominações de acordo com a época e com a localidade em que ocorria. Assim, os termos encontrados designando a manifestação são: simplesmente “samba”, “samba campineiro”, “samba antigo”, “samba de terreiro”, “samba de umbigada”, “samba caipira”, “samba lenço”, “samba de Pirapora”, ou “samba paulista”. O samba de bumbo é praticado hoje em algumas localidades do interior e na capital paulista, entretanto, em outras cidades a manifestação, que outrora esteve presente, desapareceu: “O Samba de Bumbo, hoje, é praticado nos municípios de Santana de Parnaíba (grupos Cururuquara e Grito da Noite), Vinhedo (Samba de Da. Aurora), Mauá (Samba Lenço), Quadra (Samba Caipira) e Pirapora do
Bom Jesus (Samba de Roda). Sua área de ocorrência, no entanto, estendeu-se, no passado, a muitas outras localidades, como Rio Claro, Campinas, Piracicaba, São Simão e Itapira – na região conhecida antigamente como oeste -, chegando a Itapeva e Guaxupé – Estado de Minas Gerais; Itu, São Roque, Sorocaba, Araçoiaba da Serra, Botucatu, Laranjal Paulista e Tietê, no eixo médio do rio homônimo, na antiga área de projeção bandeirante em direção aos sertões de Mato Grosso; e, também, Redenção da Serra, Jacareí e Caçapava – no Vale do Paraíba, dentre outras.” (MANZATTI, p. 22, 2005)

A origem do samba de bumbo no interior do estado de São Paulo esteve condicionada à transferência de um grande contingente de negros, vindos diretamente da África para o porto do Rio de Janeiro, e levados para a região sudeste e sul do país entre os séculos XVIII e XIX. Assim, era grande a concentração de negros de origem cultural Bantu2 na região sudeste, onde surge o samba de bumbo, configurando um terreno muito fértil para a reprodução dos padrões culturais africanos, compondo, dessa forma, um local de grande interação cultural. Manzatti aponta que o samba de bumbo se desenvolveu inicialmente no centro-oeste do Estado já no fim do século XVIII, sendo atingido seu ápice com sua expansão: “(...) do centro mais importante da produção cafeeira do país à época, um pouco para o sul de Minas Gerais e, sobretudo, para a região metropolitana da capital, a periferia do centro administrativo e industrial, entre o final do século XIX e o início do século XX.” (MANZATTI, p. 48, 2005)

2 De acordo com Manzatti, as manifestações culturais Bantu estavam centradas no continente africano, em sua porção média e meridional. A diversidade de sambas em diferentes cidades do interior, com suas diferentes formas e nomes, é concebida, pelo autor, como pertencentes a um todo mais complexo, sendo este o “samba de bumbo”. Ainda em ambiente rural, o samba de bumbo (e mesmo quando é introduzido na capital, como o samba-lenço) é parte componente dos rituais religiosos ocorridos em homenagem aos santos padroeiros católicos, como São João, São
Benedito, Nossa Senhora Aparecida, Bom Jesus, entre outros. O samba de bumbo assumiu a sua conformação atual no século XIX, sendo que na passagem para o século XX este passou a estar presente nos bairros periféricos na cidade de São Paulo. Assim, com a introdução da cultura cafeeira, no século XIX, no centro-oeste e no Vale do Paraíba, inicia-se a presença negra nesta localidade. Nestas fazendas de café havia um grande número de escravos vindos diretamente da África. Já no tocante à cidade de Santos, no litoral, onde eram escoados produtos para exportação, e também à cidade de São Paulo, especificamente, a presença de negros já se notava no início do século XVIII. Portanto, os batuques que tiveram importância decisiva na formação do samba de bumbo estavam situados em alguns locais específicos: “Os Batuques que deam origem ao Samba de Bumbo, por sua vez, estarão concentrados na região centro-oeste do Estado, ao longo das antigas rotas bandeirantes – rio Tietê (hoje em dia, relativamente margeado pela Rodovia Castelo Branco), caminho de Goiás (atual Rodovia Anhangüera) e caminho de Mato Grosso (atual Rodovia Washington Luís)” (MANZATTI, p. 82, 2005) 

AYALA (1987) aponta a presença do samba de bumbo na grande São Paulo, em Mauá. Denominado samba-lenço, a manifestação se desenvolveu na cidade, devido à migração de pessoas vindas do interior do Estado de São Paulo, que traziam consigo as expressões culturais realizadas em suas cidades de origem. O que explicaria a presença deste samba “rural” em um ambiente já urbano seria, conforme TNIHORÃO (2001), o fato de as novas camadas emergentes na cidade de São Paulo não terem um modelo urbano no qual pudessem se enquadrar, isto em decorrência da cidade ter preservado sua condição de centro administrativo de economia rural, de modo que as camadas mais baixas tendiam a reproduzir as formas de lazer típicas do mundo rural: “Em São Paulo os componentes das novas camadas populares passavam a sair da cidade para integrar-se às festas religiosoprofanas de Pirapora do Bom Jesus, espécie de capital da área do batuque rural do médio Tietê”. (TINHORÃO, 2001, p. 22)

Um importante foco de propagação deste samba dito “rural” na cidade de São Paulo era o já extinto Largo da Banana, situado na Barra Funda, o equivalente à Praça Onze no Rio de Janeiro, no que concerne ao desenvolvimento e festejo do samba. Lá os trens descarregavam bananas trazidas de outras regiões e muitos negros trabalhavam como carregadores e ensacadores. O Largo era também um espaço de sociabilidade da população negra paulistana, sendo que, nas horas vagas, entre um trem e outro, estes trabalhadores formavam rodas de samba e tiririca. A tiririca era um jogo de pernada, semelhante à capoeira, que misturava samba e jogo, tocado ao som do samba paulista com instrumentos improvisados como: a caixa de engraxate, tampa de graxa, caixa de lixo, pedaços de madeira, entre outros.3 O Largo da Banana seria, assim, o núcleo de formação e difusão do samba paulistano. O samba começava na Barra Funda (Largo da Banana) e chegava a comportar até duas mil pessoas quando chegava na Alameda Glete, sendo que o festejo do samba e da tiririca só acabava quando a polícia chegava. Como o Largo da Banana, houve outros redutos na cidade de São Paulo em que o samba tinha presença garantida:
“Esses redutos eram do conhecimento de todos que se ligavam a um ou a outro, de acordo com suas afinidades. Um dos mais importantes era a casa da Tia Olímpia na Rua Anhangüera na Barra Funda, quase encostada na linha do trem. Ali a “dona do samba”, como era chamada, promovia regularmente o samba de roda, congregando gente famosa, incluindo os bambas da Glete.” (BRITTO, p. 68, 1981)

Tais foliões, componentes de grupos carnavalescos viajavam até Pirapora para a Festa do bom Jesus em agosto, mantendo um forte contato com a manifestação cultural em questão ocorrida em Pirapora do Bom Jesus, fato que se reflete mesmo na formação do carnaval paulistano: “O permanente contato entre eles e esse tipo de manifestação deve ter sido o responsável pela inclusão do instrumental do samba-de-bumbo nos primeiros Cordões da Capital, embora estes se utilizassem do ritmo de marcha”. (MORAES, p. 19, 1978). O “bumbo” foi um instrumento de notável importância na formação do batuque4 , nos Cordões paulistanos. Entretanto, com a Oficialização do Desfile das Escolas de Samba paulistas em 1968, as organizações passaram a ser estruturadas conforme o modelo carioca, sendo todos os elementos herdados dos cordões, paulatinamente, substituídos por elementos presentes nos desfiles carnavalescos cariocas. Já especificamente sobre a cidade de Pirapora do Bom Jesus, esta se desenvolveu desde o século XVIII, em torno de uma forte tradição religiosa. Em 1725 foi encontrada uma imagem do santo Bom Jesus que, conforme relatos de pessoas que o encontraram, teria operado milagres até ser levada a Pirapora. A partir daí, uma festa em homenagem ao santo padroeiro da cidade passou a ocorrer nos dias 3, 4, 5 e 6 de agosto. Inicialmente, a festa era oferecida para romeiros que, como agradecimento ao santo por “graças” alcançadas, ou cumprindo promessas, compareciam a Pirapora nos dias de festa ou faziam romarias vindas de cidades vizinhas. Entretanto, com o crescimento da “festa religiosa” surgiu também a “festa profana”, em que negros de várias localidades do interior do Estado compareciam por motivos religiosos e, também, para festejar o samba. CUNHA denomina piraporeanos os negros e mulatos que compareciam ao samba nos dias de festa esquecendo-se, segundo o autor, da existência de uma festa religiosa. Estes vinham de Sorocaba, Itu, Campinas, Rio Claro entre outras cidades, compondo a maioria da população nos dias de festa: “De fato, a festa profana surgiu à sombra da festa religiosa. Foi a devoção ao santo, foi a festa religiosa em sua honra, que formou a tradição de se congregarem, anualmente, em Pirapora inúmeras pessoas.” (CUNHA, 1937, p.19)

3 Depoimento de Osvaldinho da Cuíca no documentário Geraldo Filme – Crioulo cantando samba era coisa feia, de Carlos Cortez.

4 Grupo de componente responsável pelo instrumental dos Cordões paulistanos, especificamente à percussão, ao lado do “choros”, responsável pelos instrumentos de sopro e de corda. Para mais detalhes ver MORAES(1978).

Por ocasião da festa, devido à grande repressão por parte dos órgãos oficiais e à proibição do samba nas ruas por parte da igreja católica, esta mesma cedeu um barracão para a população negra que lá comparecia nos dias de festa. No barracão eram cobradas as estadias em quartos situados no segundo andar, sendo que o andar térreo estava liberado para quem quisesse dormir. Era no barracão que os grupos de negros se alojavam durante os dias de festa e, também, comemoravam o samba.

Conforme CUNHA, diversos grupos, de diferentes cidades, compareciam a Pirapora nos dias de festa. Segundo denominação do próprio autor, estes grupos de sambistas, que competiam entre si, eram chamados “batalhões”. O samba não era aberto a todos que compareciam à festa, de modo que a presença de brancos e de pessoas que não pertenciam a nenhum batalhão era restrita. Em 1937, ano em que o autor realizou a pesquisa de campo durante a festa do Bom Jesus, verificou-se a presença de apenas três batalhões na cidade, os de Campinas, São Paulo e Itu. Os músicos que tocavam os instrumentos eram, em maioria, homens. Por outro lado, a dança era tarefa executada por pessoas de ambos os sexos. No momento em que o samba começava havia uma estrutura a ser seguida por todos os participantes no que concerne ao modo de cantar e conduzir a música. Assim, a atividade iniciava com a apresentação do chefe, e o reconhecimento deste, e a partir do momento que este tomava o bumbo, também propunha uma “deixa”, denominada por ANDRADE (1937) como consulta coletiva. O chefe do samba puxava o samba e deixava alguns versos que seriam repetidos pelos demais “sambadores”. A dança assim, tinha início e era puxada, na maioria das vezes, por mulheres.

A festa profana começa a entrar em decadência em 1937. Um dos principais fatores responsáveis pela decadência da festa foi a forte reação da festa religiosa contra o crescimento da festa profana. A igreja católica e os pregadores religiosos passaram a censurá-la, e pessoas não saíam mais nas ruas nos dias de festa, para não verem gestos então considerados “profanos” e “indecorosos”. Tamanha era repressão e coerção por parte dos órgãos oficiais e religiosos que em 1937 foi proibido o samba nos barracões: “Quando, nos anos 30, a Igreja adotou atitudes repressoras às atividades profanas da festa de Pirapora, o equilíbrio desejado já estava há muito comprometido, ocorrendo o predomínio da festa profana sobre a religiosa” (BRITTO, p. 93, 1986). O fechamento do barracão contribuiu de maneira incisiva para o esfacelamento da festa. Sem opções, o samba passou a ser comemorado nas estreitas ruas da cidade, sendo interrompido pela chuva e pelos carros. O desenvolvimento dos meios de transporte também modificou de maneira significativa o caráter da festa. Com a facilidade do ônibus, no período referido, os religiosos não mais participavam das romarias. Um número cada vez maior de pessoas passou a vir para a festa profana e elementos estranhos passaram a se agregar ao samba (CUNHA, 1937).

Atualmente, Pirapora sobrevive do turismo religioso, que se desenvolveu na cidade devido à sua tradição religiosa. Como já comentado, o que ocorreu foi a supressão da festa profana e a continuação da festa religiosa. A tradicional Festa do Bom Jesus de Pirapora ocorre ainda hoje nos dias 3, 4, 5 e 6 de agosto, anualmente. Entretanto, há uma nítida preponderância das realizações religiosas, como as procissões e caravanas, que chegam a reunir mais de 10 mil devotos em cada uma. 

O atual grupo de samba de roda da cidade foi formado quando teve início a decadência da festa profana. Foi entre os anos de 1940 e 1950 que surgiu o grupo, sob o comando de Honorato Missé, tendo passado por períodos de ruptura, chegando até os dias atuais em exercício, sob a tutela institucional da “Associação Cultural Samba Paulista Vivo”, criada em 2003, como iniciativa da Prefeitura Municipal de Pirapora e de integrantes do grupo. Em 2003 foi criado o “Espaço Cultural Samba Paulista Vivo”, mais conhecido pelos moradores da cidade como “Casa do Samba”, como iniciativa do governo municipal. A casa do samba foi criada com o intuito de “preservar”, “valorizar” o samba em Pirapora e difundir sua história. Comporta um pequeno material bibliográfico sobre o samba paulista, fotos datadas de 1937 até os dias atuais, sendo também um espaço de sociabilidade e reunião dos integrantes do grupo de samba.

Outro grupo de samba de bumbo formou-se na cidade há aproximadamente quatro anos, é o “Grupo Folclórico Cultural Vovô da Serra Japi”, fundado por Mário Nunes da Silva Risonho na cidade de Pirapora. O grupo desfila pelas ruas da cidade, em datas festivas ou não, com grandes cabeções, seus integrantes tocam bumbos, caixas e chocalhos, seguindo o cortejo, parando nos bares da cidade a fim de pedir bebida.


Procedimentos metodológicos

Os procedimentos metodológicos e técnicos adotados serão filmagens, pesquisa etnográfica, baseada na observação participante5, e levantamento e estudo bibliográfico acerca do tema. Para o melhor entendimento e análise do samba de bumbo, prioriza-se a abordagem dialética6, que em um de seus aspectos preconiza a necessidade de se considerar os elementos circundantes para entender o fenômeno e explicá-lo. Procura-se, assim, analisar o samba como um fenômeno em movimento, em desenvolvimento, buscando suas mudanças qualitativas, apreendendo suas contradições internas, que geram o movimento e o desenvolvimento das coisas, que englobam os termos que se opõem, porém que se complementam e garantem a unidade.


Discussão e resultados

Nos dias atuais não há mais o encontro de distintos grupos de samba de diferentes cidades do interior, como ocorrera outrora. Hoje, nos dias da festa (3, 4, 5 e 6 de agosto), o que há são apresentações de alguns grupos de samba do interior paulista, inclusive do grupo de Pirapora, além de outros grupos de música de outros gêneros musicais, como sertanejos, para o público que visita a cidade nos dias de festa.

No ano de 2001 foi gravado o primeiro CD do grupo de samba de roda da cidade, onde este aparece como “Grupo Folclórico de Pirapora”7. O grupo, hoje com 18 integrantes, apresenta-se na cidade em datas festivas, em atividades e eventos relativos à cultura popular em outras cidades, em escolas, universidades e nas unidades do SESC (Serviço Social do Comércio) tanto da Capital, como do interior paulista em apresentações( 5MARCONI e PRESOTTO (1985) 6 LAKATOS e MARCONI (1991) 7 SAMBA DE RODA NOSSA GENTE. São Paulo: Trace disc, 2003. CD) agendadas com o Grupo Folclórico Cultural Vovô da Serra Japi. O primeiro grupo realiza um ensaio na última quarta-feira de todo mês, conta com uma líder, responsável pelas apresentações, pelas vestimentas do grupo, pelas viagens, etc. Já o segundo encontra-se na cidade sem data marcada e realiza um churrasco por mês para todos os integrantes, em que o samba é festejado. De um modo geral, os participantes dos grupos ligaram-se a estes pela identificação que mantêm com a manifestação, mas, sobretudo aliaram-se com o intuito de preservar a tradição que carrega o samba de bumbo.

Congregando as diferentes modalidades desta mesma e xpressão cultural (o samba de bumbo), a cidade de Pirapora, no início do século XX, atuou enquanto aglutinadora de diversos grupos do Estado de São Paulo, em decorrência da festa do Bom Jesus em agosto. Assim, a concepção vigente de que o samba paulista, tanto o samba de bumbo do interior do estado, como o samba paulistano, teria nascido em Pirapora, é decorrente do discurso de intelectuais, sambistas e de outros órgãos, como jornais, ou, em âmbito local, da própria prefeitura da cidade.

Um intelectual de grande importância para a solidificação e difusão deste discurso foi Mário de Andrade, que, com seu texto intitulado “O samba rural paulista”, delineia alguns traços essenciais de uma manifestação cultural que seria para o autor representaria o samba paulista em sua totalidade. Andrade (1937), no texto referido, discorre sobre o samba observado em três anos na cidade de São Paulo, em 1931, 1933 e 1934, e em Pirapora do Bom Jesus, observado em 1937. Andrade, buscando conferir legitimidade ao samba rural, elege a dança como elemento definidor do samba rural enquanto uma manifestação autêntica. Não obstante, considera que a dança realizada em Pirapora nos dias de festa tenha influenciado a coreografia do samba paulista como um todo: “É possível finalmente imaginar-se que as festas religioso-profanas de Pirapora tenha tido no passado influência decisiva senão na criação da coreografia do samba paulista, pelo menos em sua divulgação no Estado.” (ANDRADE, p. 183, 1937).

Ao tratar o samba paulista como uma expressão homogênea, sem contrastes, e ao colocar Pirapora do Bom Jesus enquanto local em que foi definida a coreografia do samba de bumbo, Andrade dá início ao discurso, corrente até os dias atuais, de que o samba paulista, como um todo, nasceu em Pirapora. A Prefeitura Municipal local, especialmente, confirma o discurso que reconhece Pirapora enquanto “berço do samba paulista”, o que fica evidente quando se observa o site da instituição na internet. Ao falar sobre o samba de bumbo em Pirapora, os jornais locais confirmam a concepção acima colocada. Ao comunicar um evento ocorrido na cidade, a Expo-samba, cujo intuito seria reviver o período de encontro de diversos grupos de samba na cidade, o jornal coloca: “Apesar do tom moderno do tema, a programação deste ano também pretende resgatar a beleza da história do samba na cidade e o fato de o samba de São Paulo ter nascido em Pirapora (...) O evento vai mostrar peças de outros carnavais, adereços e fotos que marcaram época, além de exaltar a riqueza do samba de roda, cujo ritmo é originário de Pirapora.”(Jornal Município em Notícias, p. 7, 2007).

Outro jornal, o Jornal da Tarde, este de maior projeção, ao comunicar o mesmo evento, divulga uma matéria cujo título é: “Pirapora resgata o samba. Berço do batuque paulista, cidade promove festa”. E mais adiante, no decorrer da matéria: “Considerada um dos berços do samba paulista, a cidade de Pirapora do Bom Jesus inaugura na tarde de hoje a primeira edição da Expo-Samba (...)”(Jornal da Tarde, p. 1 C, 2007)

Ao divulgar a festa do Bom Jesus de Pirapora a ser realizada no mês de agosto na cidade, o site da Prefeitura Municipal de Pirapora reafirma o mesmo discurso, exaltando o samba no mesmo sentido, e ainda promove a festa como um resgate de sua dimensão profana, ocorrida no barracão:

“Pelo segundo ano consecutivo, serão resgatados os “barracões do samba”, imortalizados em Pirapora na década de 30 e que serão retomados no dia 5 de agosto, a partir das 17 horas, sob o comando do músico Osvaldinho da Cuíca. O barracão não pára até às 17 horas do dia 6, momentos antes da procissão.(...) A história conta que o samba de São Paulo nasceu em Pirapora, nos batuques dos dias da festa do padroeiro. Não queremos que esta história se perca.” (http://www.piraporadobomjesus.sp.gov.br/noticias07/festa001.html. site
visitado dia 19/07/2007)

Um músico envolvido diretamente com o samba de bumbo em Pirapora, presença marcante na maioria, senão em todos os eventos relativos ao samba na cidade, é Osvaldinho da Cuíca. O sambista além de se apresentar nas festas de agosto há pelo menos três anos, este ano participou do carnaval promovido na casa do samba, e agora realiza uma vez por mês uma apresentação (no último domingo de cada mês) na cidade no projeto promovido pela Secretaria de Cultura e Turismo denominado “Samba na Casa”. Em pesquisa de campo realizada no carnaval, foi observada a apresentação do sambista na casa do samba. Osvaldinho é um dos sambistas paulistas difusor da concepção de que o samba paulista surgiu em Pirapora do Bom Jesus. Isto fica patente durante seus shows, nas falas do músico que confirmam Pirapora enquanto berço do samba paulista, tanto do samba realizado no interior, como do tipo de samba tocado por ele.

Osvaldinho lançou recentemente um disco dedicado exclusivamente ao samba paulista, cujo título é “Osvaldinho da Cuíca convida em referência ao Samba Paulista”. Em entrevista dada ao jornal Correio Popular (caderno C) no dia 22 de maio de 20058, antes da gravação do disco citado, o sambista afirmou que neste CD seriam gravadas músicas que remetessem ao samba paulista, ao samba rural, realizado pelos escravos nas fazendas de café do interior paulista. De fato, o disco contém faixas que remetem à formação do samba realizado na cidade de São Paulo, com músicas cujos temas vão desde a prática da Tiririca pelos sambistas do Largo da banana, a formação do primeiro cordão carnavalesco da capital, o Barra Funda, até a comemoração dos 75 anos da Vai-Vai. Entretanto, sobre o samba dito “rural”, o samba realizado no interior do Estado de São Paulo, Osvaldinho saúda em uma das faixas do CD uma cidade em especial: Pirapora do Bom Jesus. No filme “Geraldo Filme – crioulo cantando samba era coisa feia”, Osvaldinho da Cuíca em seu relato coloca a existência do samba em alguns locais da capital paulista, como o Largo de São Bento, Sé, Prainha, entretanto, afirma que o samba só se estabeleceu na cidade de São Paulo com o movimento cultural existente entre a capital e Pirapora. 8 Informações retiradas do site http://www.consciencia.net/2005/mes/10/bruno-osvaldinho.html. visitado no dia 19/07/2007.

Osvaldinho se refere ao intercâmbio realizado entre alguns trabalhadores que trabalhavam em uma estrada de ferro em Pirapora, e levavam o samba realizado na cidade para São Paulo. Neste sentido, aponta que um dos maiores redutos deste samba era o Largo da banana, onde era realizado este tipo de samba, acompanhado da Tiririca ao som de latas e caixas de engraxate, latões e outros instrumentos improvisados. O filme como um todo reforça o discurso de que o samba paulista nasceu em Pirapora do Bom Jesus. Isto fica evidente não só na fala de Osvaldinho, mas também, no discurso de outros sambistas e intelectuais que oferecem seus relatos a respeito do samba paulista. É evidente que a atenção especial dada à cidade de Pirapora se deve ao fato de Geraldo Filme ter vivenciado, quando criança, o samba nesta localidade. Entretanto, a imagem de Pirapora é retomada algumas vezes no filme como a cidade que deu origem ao samba praticado na cidade de São Paulo, ou seja, o “berço do samba paulista”.

É patente a existência deste discurso, presente principalmente na fala dos sambistas e dos indivíduos representantes dos órgãos governamentais locais, na cidade de Pirapora. Por meio da observação direta foi possível perceber que os moradores locais não envolvidos diretamente com o samba de bumbo não transmitem, em suas falas, tal discurso nem sequer têm conhecimento das atividades dos grupos de samba locais. Assim, elevar a cidade de Pirapora enquanto “berço” do samba paulista significa desconsiderar o processo histórico que introduziu o samba de bumbo na capital, com a migração de pessoas vindas do interior para a cidade de São Paulo. Significa também desconsiderar os redutos formados na capital, como as casas em que era realizado o samba – a casa da Tia Olímpia, ou o terreiro de Zé Soldado – além do não reconhecimento da importância da existência de diversas localidades em que o samba de bumbo era praticado, mesmo em momento anterior à tradição formada em Pirapora destes diversos grupos se reunirem na festa do Bom Jesus.

Ademais, pode-se afirmar que por parte dos sambistas paulistanos o interesse em divulgar a imagem da cidade de Pirapora enquanto berço do samba paulista é conveniente, ao passo que é interessante a criação de uma história, uma ‘tradição’, em torno do samba paulista, que faça frente ao samba carioca, já consagrado nacionalmente. Quanto ao discurso vinculado na própria cidade de Pirapora, este contribui para a confluência de um número cada vez maior de turistas que comparecem à cidade para prestigiar o samba de bumbo, tanto em datas festivas, como em outros eventos realizados na cidade no decorrer do ano. Neste sentido, a presença constante de Osvaldinho da Cuíca na cidade, pelo menos uma vez por mês, no projeto “Samba na Casa”, contribui em muito para casar ambos os interesses.


Considerações finais

O que se pretendeu neste texto, foi a apresentação da problemática na qual está inserido o samba de bumbo, bem como de seus aspectos históricos relevantes contemporaneamente. Considerando que o presente trabalho está em andamento, o conteúdo contido no texto não representa nenhuma conclusão definitiva a respeito do tema. A pesquisa de campo, etapa essencial para o desenvolvimento da pesquisa, está em andamento. Portanto, busca-se entender o processo de mudança na concepção do samba de bumbo enquanto manifestação antes reprimida, por ser atividade essencialmente de negros paulistas, e atualmente exaltada pelos órgãos institucionais em Pirapora do Bom Jesus.


Bibliografia

ANDRADE, Mario de. “O samba rural paulista”. In: Revista do Arquivo Municipal. Ano IV. Vol. XLI. S: Departamento de cultura, 1937.
AYALA, Marcos. O samba-lenço de Mauá: organização e práticas culturais de um grupo de dança religiosa. São Paulo, 1987. (Dissertação de Mestrado. Departamento de Sociologia, FFLCH, USP)
BRITTO, Iêda Marques. Samba na cidade de São Paulo (1900-1930): um exercício de resistência cultural. São Paulo: FFLCH/ USP, 1986.
CUNHA, Mario Wagner Vieira da. “Descrição da Festa de Bom Jesus de Pirapora”. In: Revista do Arquivo Municipal. Ano IV. Vol. XLI. S: Departamento de cultura, 1937.
LAKATOS, Eva M.; MARCONI, Marina A. Fundamentos de metodologia científica, São Paulo: Editora Atlas S. A., 1991.
MANZATTI, Marcelo Simon. Samba Paulista, do centro cafeeiro à periferia do centro: estudo sobre o Samba de Bumbo ou Samba Rural Paulista. Dissertação (mestrado). Departamento de Ciências Sociais. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005.
MARCONI, Marina A.; PRESOTTO, Zélia M. N. Antropologia: uma introdução. São Paulo: Atlas, 1985.
MORAES, Wilson Rodrigues de. Escolas de Samba em São Paulo (Capital). São Paulo: Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1978.
TINHORÃO, José Ramos. Cultura Popular: Temas e questões, São Paulo: Editora34, 2001.


Documentários

CORTÊZ, Carlos. Geraldo Filme – crioulo cantando samba era coisa feia. Brasil, 52 min., cor, 16 mm, 1998.


Discos

SAMBA DE RODA NOSSA GENTE. São Paulo: Trace disc, 2003. CD
OSVALDINHO DA CUÍCA CONVIDA EM REFERÊNCIA AO SAMBA PAULISTA. São Paulo: Rio 8 produções fonográficas, 2006. CD


Jornais

Jornal Município em Notícias, Pirapora do Bom Jesus e Araçariguama. Ano II, N. 28, 2º quinzena de janeiro de 2007.
Jornal da Tarde. Caderno Variedades. São Paulo. Domingo, 11 de fevereiro de 2007. 


Sites consultados

http://www.consciencia.net/2005/mes/10/bruno-osvaldinho.html. Site visitado no dia 19/07/2007

http://www.piraporadobomjesus.sp.gov.br/noticias07/festa001.html. Site visitado dia 19/07/2007